Olhar Filosófico

Maltrapilho e sem cajado

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Parado, olhando a todos que passavam, se achegou um dia ao portão e bateu palmas como quem atrapalha um jantar de família. Incomodava sempre. Mas aqueles que ali viviam, por ali andavam, só ali sorriam, não entendiam que ele pudesse continuar sem que alguém se prontificasse logo a chamar a polícia e levá-lo em cana. Enfeiava a paisagem. O cheiro de suor rebatido, marcava o ar e obrigava um novo espaço para que outros pudessem respirar melhor.

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Parece que nunca fez mal a ninguém. Pelo contrário, há quem diga que as crianças que o reparavam, jogavam-lhe tchaus e beijos, para certo horror de seus progenitores. Ainda outros mais contidos, reservados, também guardavam para si a ideia e o sentimento de que ele emanava certo sentido de existência e liberdade. Mas daí a ouvi-lo, tocá-lo, segui-lo era um abismo de distância. Disparate de mente culpada.

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Atraía, como imã, o olhar de quem via, os ouvidos de quem escutava e as mãos de quem doava. Estranho! Às vezes, falava brandamente sobre questões a envolver grande carga de esperança e desprendimento. Outras vezes, maldizia aqueles que exploravam a fragilidade alheia. Certa feita, pegou uma sobra de corda deixada no chão e chicoteou o vento em direção a um sujeito que esbanjava dinheiro e alma vazia.

Na média geral das opiniões dos habitantes, o medo se alastrou quando de sujeito só, outros famélicos a ele se juntaram. Era óbvio que tinham sede também, mas como que por um milagre, ou, talvez, por uma nova droga vendida pelo homem, se mostravam saciados e na maior parte das vezes, alegres como quem enriquece depois de ser muito pobre. Um daqueles que o acompanhavam, tão maltrapilho quanto, às vezes ria, como quem lamentava, dos outros que se alimentavam por entre frestas de cortinas de seda com medo de criar inveja em quem não podia. 

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E era difícil decifrá-lo. Muitas vezes, saía da rua, com toda a trupe que o acompanhava, é claro, e voltava depois de alguns dias com um grupo cada vez maior. De maltrapilhos, sempre, mas também com alguns que se pareciam com outros tantos que habitavam as bonitas e bem vigiadas casas das redondezas. E era difícil decifrá-lo.

Ninguém soube ao certo responder a alguém que passava por ali quando esse perguntou em que momento começou aquele ajuntamento de gente feia, pobre e com alguns de cara normal, cara de gente bem nascida, tudo perigosamente misturado. O que muitos responderam, isso sim, agora parecia estar claro, era droga nova no mercado que o homem traficava e consumia. Só podia.

Era então o momento de acionar os homens da lei para que protegessem todas as famílias que ali, na formosa rua, ficavam expostas àquela cena estranha e perigosa todos os dias, além de terem suas propriedades cada vez mais desvalorizadas.

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Quando chegou a polícia da lei e o estado da força, quase começou uma matança, visto que um daqueles que seguiam o estranho, puxou uma faca e avançou na orelha de um dos guardas-propriedades. Mas no mesmo instante, ele, o indivíduo a liderar o grupo dos famintos desprendidos e dos pobres extasiados, pegou parte da orelha decepada e recolocou no lugar devido do soldado já em choro. Mágica? Nunca! Todos os moradores que olharam a ação por trás das grades de seus santuários, por trás dos ombros dos seus empregados, tiveram a certeza de que era a droga, a magia, coisas ruins típicas das religiões de famintos desesperançados. Por fim, o homem se entregou preservando os seus, que fugiram rua acima, rua abaixo, rua por todo lado. E a rua voltou ao normal. Voltou à normose. Voltou ao eixo exato do desnivelamento. Voltou ao sistema.

Per omnia saecula saeculorum!! Para todo o sempre!!

Das casas que ali haviam, prédios de negócios foram erguidos. Um banco centenário habita hoje a esquina com toda a extensão de sua alma de mercado.

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Alguns que ainda passam no local, no entanto, insistem em parar um momento, sacudir a poeira dos pés e seguir caminhada distante.

No fim das contas, quem conta o que houve, ouve em parte um silêncio, noutra parte o mistério. O homem, que dizem não estar morto, apesar de tanta prova em contrário, ficou na memória das pedras e na esperança dos pobres. Há quem diga, há quem acredite, há quem lute, há quem mude. Camadas de histórias que voaram no tempo e no espaço e mudaram campos, bichos, estrelas e pessoas. É passagem àqueles que chamam Páscoa! É Páscoa àqueles de passagem!

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