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Existia uma quitanda muito próxima da casa onde morava onde sempre pela manhã, seu Jônatas dizia (acho que dizia): menino, corre que o tempo é curto! Ele sendo fanho, sempre entendi que se tratasse da palavra surdo, ou da palavra tudo ou ainda da palavra fluxo. E, de certa maneira, como invariavelmente correndo, eu moleque passava por ali, tempo era mais vento e balbucio do quitandeiro do que palavra.
Seu Jônatas hoje já não vive mais entre nós e amanhã quem sabe. Mas vive ainda me assombrado enquanto lembrança de frase foneticamente imperfeita pronunciada aos meus ouvidos preconceituosos e metidos a besta. Menino, tempo é curto!
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Sempre associei que dizer o tempo é curto é de uma banalidade ao estilo de quebra silêncio em elevador sem assunto. E não é que não acho mais (tanto) assim!? Afinal, seu Jônatas, seria o tempo um fenômeno por excelência relativo à velocidade, como o descrevera seu Alberto? Se isso sempre tentou me dizer, desculpe-me, jamais poderia dizê-lo com exatidão tal resposta, pois no tempo em que corria próximo de sua loja em que vendia de tudo e mandava buscar mais um pouco, tempo para mim era bola de futebol e chute acima da canela nas decisões mal tomadas pelos árbitros das peladas, que éramos nós mesmos, como o senhor já devia imaginar. E se era velocidade o fato relativo ao tempinho nosso de cada dia, vivi quinze anos em cinco e o senhor, para a vista desse que vos fala, vivia cinco em trinta. E de devagar em vagar, o senhor então divagava. Saudações a ti por aquilo que não entendi. Agora sei que de quitandeiro e físico, todo mundo tem seu louco. Valeria também dessa forma. A vida oferece meios no meio de tudo que é espaço. Espacemos no tempo, seu Jônatas. Espacemos. E como dissera o Alberto, reafirmo em minha desculpa como se pensamento próprio fora: “O adulto médio nunca se preocupa com questões como espaço e tempo. Esses são conceitos que ele aprendeu quando criança. Mas, como me desenvolvi tão lentamente, comecei a me questionar sobre espaço e tempo apenas quando já era adulto”. Eis me aqui, amigo. Entendendo pouco.
E se por um desses acasos que envolvem palavra, som, pivete e velocidade o senhor estivesse me dizendo que o tempo é surdo? Confesso que essa ideia muito me alegraria, pois, a passagem dos momentos, objetivamente, parecem ignorar os significados dos instantes. Ninguém talvez perceba que a temporalidade enquanto fenômeno total ou parte de um fenômeno natural parece pouco se importar de fato com qualquer coisa. Colocamos imagens, áudio estéreo e afeto sobre ou diante daquilo que talvez seja só uma das plataformas de acesso aos sentidos, sempre interesseiros, que construímos para vida. Tempo é surdo! Exato parece ser assim, mas também indiferente, seu Jônatas. Indiferente. E estamos aí. Deixa para lá que a gente sempre inventa daqui. Seguimos, quitandeiro. Viver também é fruta, terra e Sol.
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Por outro lado, se o tempo era visto pelo senhor como fluxo: menino, o tempo é fluxo, aí então repetiria eu algo parecido com a ideia do seu Aurélio, tido como santo por falar bonito, pensar bem e converter indecisos. Claro que digo isso por agora, moleque que era, a bola não era uma esfera, o gol não era um retângulo e tempo mesmo era o vira dois, acaba quatro... ou mil, a depender de ânimos e pernas.
Portanto, se tempo é fluxo, seu Jônatas, é modo de dizer que o fluir no espaço é aquilo que acredito como algo de meu, alcançado pela palavra e sensação da memória atualizada no pensamento que temos e coletivizamos. Tempo é fluxo e na mente é refluxo: “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.” Tempus fugit! Tempo flui, mas só enquanto presente na memória de quem dele tem consciência. Vai e vem no mesmo estar. Será isso o que me apontava, oh profeta das quitandas?Será?!
Mas, por fim, se me dizias que o tempo é tudo, então lamento, oh! camarada retido nas retinas auditivas de minha memória, o tempo não é tudo. Definitivamente não é tudo. Na esfera em que nos englobamos como humanos, o tudo é impossível, o tudo é lastimável, o tudo viola o estatuto do ser em que nos conjugamos enquanto verbos encarnados, é só falha na máquina que temos de criar palavras a métricas. Tudo é nunca, e como já aprendemoscom o Agenor popular brasileiro, dessa nossa geração melancólica, “não responda nunca, meu amor, nunca
pra qualquer um na rua, Beija-Flor”.
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No fundo, bem no fundo, ainda nos construímos como matéria apesar do tempo, e no espaço ocupado o tempo se versifica e sopra direções, como diziam Lô e Rô: “Coisas que a gente se esquece de dizer/ frases que o vento vem às vezes me lembrar/ coisas que ficaram muito tempo por dizer/ na canção do vento não se cansam de voar”.
Saudades, seu Jônatas, embora nunca tenhamos tocado os sinônimos. Seguimos memória, palavra e dúvida em nosso sempre de quase todo dia.
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