Olhar Filosófico

Homero e o canto da sereia empreendedora

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Foto;Unsplash

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Na ilha de Ítaca, o velho Homero, cego e barbudo, recitava versos épicos para um público atento. De repente, um tremor percorreu a terra, e do mar emergiu uma criatura nunca antes vista: uma sereia vestida de terno azul, com laptop em mãos e sorriso Colgate.

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"Atenção, mortais!", bradou a sereia, empunhando o laptop como um cetro. "Trago-lhes a sabedoria milenar dos gurus da autoajuda! Preparem-se para o despertar de sua mente milionária! Programação neurolinguística é o futuro."

Homero franziu a testa, confuso. "Que diabos é isso?", murmurou ele. "Uma nova musa? Uma deusa do marketing digital?"

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A sereia, ignorando o poeta, prosseguiu com seu discurso inflamado: "Cansados de viver na mediocridade? Desejam alcançar o sucesso estrondoso e a felicidade plena? Então sigam meus ensinamentos! Descubram o poder da positividade tóxica, visualizem seus sonhos com clareza cristalina e repitam mantras motivacionais até a exaustão!"

Os ilhéus, fascinados pela promessa de riqueza e realização, aclamaram a sereia com fervor. Homero, porém, observava a cena com crescente perplexidade. "Mas... isso não é poesia!", protestou ele. "Onde estão os heróis trágicos, as batalhas épicas, os deuses caprichosos? E quanto ao destino, à Moira inexorável?"

A sereia riu, mostrando dentes brancos como pérolas. "Destino? Moira? Isso é conversa de derrotado! O futuro está em suas mãos, meus queridos! Basta acreditar em si mesmo e seguir a fórmula mágica do sucesso!"

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E eis o Mentor Enigmático…

Dias se passaram, e a ilha de Ítaca se transformou em um centro de frenesi “autoajudístico”. Palestras motivacionais, workshops de inteligência emocional e maratonas de visualização criativa brotavam como cogumelos em solo fértil. Homero, cada vez mais isolado em sua cabana, observava o panorama com crescente desilusão. Por um momento, acreditou ter visto Ulisses, agora um coach de liderança que ensinava CEOs a "navegar pelas tempestades do mercado". Agamenon, outrora rei de Micenas, como um palestrante motivacional que percorria o mundo contando histórias de superação. Até mesmo Penélope, havia se rendido à moda da autoajuda. Ela frequentava workshops sobre "relacionamentos" e "empoderamento", buscando "libertar sua deusa interior".

"A poesia está morrendo!", lamentava ele. "A arte da palavra sucumbiu à tirania do positivismo barato e das frases de efeito!"

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Em meio ao caos, um homem alto e magro, com barba espessa e olhar penetrante, desembarcou na ilha. Era Sócrates, o filósofo andarilho, em busca de novos desafios intelectuais. Intrigado com a febre da autoajuda, ele logo se juntou a Homero em sua reclusão.

"Que estranha epidemia assola este lugar?", perguntou Sócrates, com sua ironia habitual. "Que tipo de sabedoria se baseia em slogans e expectativas para crentes?"

Homero narrou com amargura a ascensão da sereia e a queda da poesia. "A era dos heróis e dos mitos deu lugar ao culto da personalidade e ao egocentrismo desenfreado", concluiu ele.

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Sócrates, pensativo, acariciou a barba. "Talvez haja uma oportunidade nesta crise", disse. "Talvez possamos usar a linguagem e a argumentação para desmascarar as falácias da autoajuda e restaurar o valor da reflexão crítica."

Dá-lhe gargalhadas…

Diante da multidão reunida na praça central, Homero e Sócrates desafiaram a sereia para um duelo de sabedoria. A sereia, confiante em seu poder de persuasão, aceitou o desafio com um sorriso arrogante.

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Homero, munido de sua lira e de sua vasta bagagem cultural, recitou versos que exaltavam a beleza da tragédia, a força do destino e a complexa natureza humana. Sócrates, por sua vez, com perguntas incisivas e argumentos lógicos, desmantelou as falácias da autoajuda, expondo a hipocrisia e o oco das promessas mirabolantes.

O público que assistia, inicialmente fascinado pelo discurso da sereia, começou a rir das contradições e do absurdo de suas ideias.

Inspirando, expirando…

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Todavia, ao final, Homero e Sócrates cansaram por toda energia investida para falar o óbvio e se perguntaram em uníssono quase em pensamento dividido: Para quê, se a ignorância impera? O mundo é dos aflitos, o dinheiro é dos patéticos e a sabedoria, sabe-se lá se ainda vale a pena? Gozemos da vida como Epicuro e zombemos da morte como Demócrito. Uma garrafa de vinho se espatifa no chão!

Cortina desce, os celulares acendem e a plateia grita violentamente: Sereia! Sereia! Sereia!… E Ítaca continua uma ilha distante.

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