Olhar Filosófico

Gertrudes, Gertrudes, saudade vã

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Gertrudes, nomeei-te saudade. Afinal, acompanha-me há tempos. Gertrudes, a saudade daquilo que não foi, do que não é ou será. 

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Outrora, Gertrudes, havia te nomeado solidão. A minha solidão, Gertrudes. Aquela tão íntima que não podia nem esconder-te a alma, os vícios, os risos e a tristeza que vinha de não sei onde e se colocava senhora de si (e de mim) para um tal depois que custou a chegar.

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Mas, como disse, agora nomeei-te saudade. Pois a saudade é o sentimento genuinamente humano, fatalmente humano e nos dá a real e exata dimensão daquilo que não podemos conter, fixar ou segurar, Gertrudes, mas, antes, tão somente aceitar e sentir a ausência. A vida, sem dúvida, é o dilema das presenças e ausências. Para cada presença, abrimos mão de bilhões de outras presenças que, imediatamente, são nos presentificadas como ausência! A vida é pêndulo, Gertrudes. De um lado para o outro e um ponto fixo imutável bem no meio. Para lá e para cá, para cá e para lá… 

Gertrudes, não tenha pena de mim, só me deixe entender-te como a saudade amiga, estender-te o tapete voador e deixar o pensamento ir longe. Voar para além das expectativas, minhas e de quem seja. Voar. Voar. A dor me faz entender, Gertrudes, que a realidade é rainha e o tempo é rei de si e de todos. A saudade, teu nome, Gertrudes, há de me reanimar o sangue, há de transfigurar minha face e mudar o meu corpo. Sou todo uma coisa em queda e um autômato de controle incerto. Não mexa tão forte os fios pelos quais governa meus membros de boneco de marionete. Não tenha pena, repito, mas não apresse de uma só vez todo o sofrimento dos dias cinzas de chuva ácida. Seja justa, senhora Gertrudes, saudade renomeada. Só seja justa que aceito o destino. Aceito o desafio de procurar o que nunca acharei, seja usando velas, lanternas, holofotes ou mesmo com o Sol entre os dedos. 

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Há pessoas que são um misto de coisa e bicho, Gertrudes, eu sou uma mistura de bicho e vento, estou como quem se cuida para não flutuar nos redemoinhos e perder a orientação dos pés e das patas, e do faro e da cara. Eu me protejo, saudade, Gertrudes-saudade. O meu ambiente é uma caverna mais hostil onde hibernam ursos com os quais não construí intimidade, não construí humanidade. O teu nome saudade me alimenta de esperança, mesmo que já saiba que no fim nada será como deveria ser, nada será como antes, nada será e tudo bem. Eu sou também solitude, Gertrudes. Nem tudo é tão estranho, às vezes, pleno, às vezes planos, às vezes planta e fotossíntese. Mas não sinta pena de mim, Gertrudes. Faça o que tem que ser feito, e a realidade sempre se encarrega do deve ser. A realidade sempre me atropela, e você sabe disso. Num quarto escuro e sem paredes, sua saudade habitou em mim e, simbioticamente, te revelei esse segredo... e outros também. E as minhas dificuldades de lidar com o óbvio, com o sonho que despenca de um arranha-céu, Gertrudes. Quando te falei, mais sozinho do que uma pomba num fio de alta tensão em dia de chuva torrencial, você parece não ter entendido das dificuldades das minhas juntas e tendões em se movimentarem para dentro de ti e contigo partilhar um fim. Os fatos são os fatos e eu ainda tenho peças de quebra-cabeças montando o meu coração faminto. Não penses que sou uma espécie de Hannibal Lecter de almas nubladas, sou mais um cão procurando a comida do dia anterior e seguindo qualquer caminho. Ainda serei por um tempo aquele castelo de cartas, Gertrudes. Só não puxe o Ás de copas que está na base do meu ser. Pelo menos, ainda não. Dê-me um tempo e poderá soprar esses papeis logo mais (porque sou de cartas feitas de papel).

Gertrudes, saudade de tudo o que se passou e eu não pude ver, mas de alguma forma senti. Saudade de tudo que se foi e poderia ter sido diferente. Ou pior ou melhor, mas permaneço assim ausente. Saudade daqueles que me escaparam, que se foram no espaço, que sorriram alertas, que pediram ajuda e me ofereceram mais alma.

Saudade, Gertrudes, desse nome estranho que inventei, saudade de ti solidão, de ti Gertrudes, um conceito e um jeito de ser que, com certa pena, abraça meu infortúnio.

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