Olhar Filosófico

Freud, a padaria e a metáfora

Continua depois da publicidade

Sigmund Freud, ele mesmo, o que todos conhecemos, um certo dia se encantou pela padaria.

Faça parte do grupo do Diário no WhatsApp e Telegram.
Mantenha-se bem informado.

Não me consta que, inicialmente, se tratasse de uma busca íntima e de radical virada de perspectiva para tornar-se padeiro ou mestre confeiteiro, ainda que tivesse um fraco pelos doces da senhora Amalia Nathansohn, sua mãe.

Continua depois da publicidade

A padaria lhe encantou por outro motivo, ou motivos, como preferirem ao final da narrativa. Entendia Sigmund Freud, que tudo na padaria remetia a vida interior do indivíduo. Por vezes, tentou junto ao senhor Wagner Honsmit, engatar o raciocínio que elucidava sua tese. Tempo gasto com um monólogo de tipos e contrastes que não cativavam o dono do estabelecimento. Curioso seria o fato do senhor Wagner ter se tornado um dos seus mais importantes casos. Depois do Homem dos Ratos e do Homem dos Lobos, Honsmit se tornaria o Homem do Pão. Sonhara numa noite de sono profundo, que os pães eram seres divinatórios que lhe imcumbiram da tarefa de produzí-los para chegar mais próximo da pedra filosofal. Daquele dia em diante, Wagner não conseguiria mais comê-los naturalmente, antes, colava seu ouvido a esse alimento tão ímpar da humanidade e somente se não lhe viesse nada à mente, palavras ditas pela mistura de farinha, água, óleo, fogo e glúten, levava-o à boca a fim de beijá-lo e, por fim, ingeri-lo, caso contrário ninava-o em sua cama. Com Freud, senhor Wagner permaneceu por quase dois anos e conseguiu, pouco a pouco, restabelecer a ligação entre o pão como alimento e as diversas camadas de religião que o revestiam de antropofagia e vontade de pertencimento sócio afetivo. Entre a obsessão e a angústia, voltou ao senso de realidade.

Mas, bem, a padaria é que importa aqui. E a epifania vivenciada por Freud em tal estabelecimento.

Continua depois da publicidade

Presumiu, Sigmund, que as camadas que compõem uma padaria, refletem as camadas que nos compõem enquanto vida interior. É verdade que antes dessa epifania, tomara-lhe em proporção parecida, uma outra, quando fixara seus olhos chorosos às voltas internas de uma cebola. Entre lágrimas e um pensamento embotado, o momento passara e só na padaria tudo faria sentido. Amplo, completo, metafórico. 

A posição ocupada pela exposição de tudo à venda, pães, leite, queijo, doces e salgados dispostos em vitrines organizadas conforme as regras do varejo, trouxe ao nosso pensador uma ideia de policiamento social, ao estilo do cumprimento obrigatório de determinadas tarefas impostas pelo meio em que se vive. Uma espécie de funcionalismo que, para além daquilo que somos ou podemos ser, se imporia como um conjunto de ritos disciplinares em vista da aceitação e auto afirmação por meio de tarefas esperadas pelo grupo para o funcionamento adequado da sociedade que me habita, do meu eu à família, da igreja ao Estado, do vazio ao moralismo. Um super homem censurado, uma super mulher culpada, uma disposição censurante para não ser visto como o distorcido e fora do padrão esperado, enfim, um superego que agride e enquadra as diversas razões de ser de cada um, todos os nós de cada eu.

Olhando mais detalhadamente, entre o espanto e a compaixão, nosso Sigmund não pararia por aí. Essa camada primeira de análise não explicava o quão complexos também somos. E fixando a atenção no senhor Wagner Honsmit, entendeu que o mesmo era, por assim dizer, o sistema de freios e contrapesos daquela padaria. Ao estilo do barão de Montesquieu e sua teoria dos três poderes do Estado, Wagner cumpria em parte a expectativa das funções como dono de padaria, por outro, desde o letreiro aos valores, das promoções às cores das paredes, do horário de saída do pão à organização dos clientes dentro do estabelecimento, na verdade, o senhor Honsmit é quem dava o tom e o ritmo. A organização, sem dúvida, era sua, das suas ideias e vivências como homem e comerciante, como pai e filho que havia sido, como marido e cidadão do seu estado. Tal como um liquidificador que, junto aos ingredientes escolhidos nele acrescentados, fornece uma vitamina que sustenta e dá sabor, o proprietário era ele mesmo o maestro daquela orquestra. Ainda que preso a traumas e utopias, a desejos e reparações, era o rei do seu próprio reinado, o ego do seu próprio espírito. Ergo sum! Ergo sum! Mas sem o Cogito prepotente de Descartes, riu, em pensamento, Freud consigo mesmo.

Continua depois da publicidade

Mas o melhor estava por vir, afinal, epifania que se preze não vem pela metade! E, então, ao tentar achar uma espécie de um ultra sistema nervoso central na padaria, um córtex afundado no mistério de suas pulsões, o filho de dona Amalia e seu Jacob, como diria Fausto Silva, intuitivamente deparou-se, finalmente, com a cozinha! É lá que a mágica acontece (veja bem, não o milagre, a mágica, pois tudo é truque, força, trauma e símbolo).

Feliz como nunca, Freud despertara para o óbvio! Onde nem a disposição funcional da padaria e nem as intenções do senhor Wagner tinha vez, lá, escondido, quase em frenesi, trabalhava Manuel Jurgeson, um alemão filho de suecos que inventava novas misturas, novos pães e recheios, novos doces e salgados, além de tudo aquilo que lhe era pedido.

Num ímpeto criava sonhos, noutro fazia bombas. Em dias estranhos, era um paradoxo, terríveis os sonhos, maravilhosas as bombas, às vezes, era só força bruta a sovar a massa misturando-a com o seu suor de trabalhador de poucos direitos reconhecidos. Manuel e seu laboratório de quimeras e maravilhas, era aquilo não visível a todos, nem pensado por muitos, mas seus frutos estavam à mostra e de alguma forma afetava toda a realidade à sua volta. Perdido em suas vontades e sinais de utopias e pesadelos, o padeiro forçava a magia a se transformar em realidade. E quando seu Wagner não lhe pagava nem o soldo diário, alegando fraqueza no movimento, Manuel cuspia nos pães e, por sua própria vontade, misturava ingredientes outros às massas tradicionais, ferindo a expectativa dos consumidores. Fato é que, de alguma forma, todos se submetiam a ele e dele dependiam para momentos alegres ou tristes à mesa de suas casas. Para além do consciente (ou aquém, mais tarde definiria melhor) existira,segundo Freud, um Manuel e seu laboratório de alquimia, a cozinha, uma força fora do controle aparente que condiciona a alimentação de todos nós. “Culina, ergo sum”, inconsciente, fundo do oceano, buraco negro, anotou Sigmund no papel de pão que levava consigo e seguiu a pé. Intranquilo e a pé.

Continua depois da publicidade

Há quem diga que esta história é verdadeira. Há quem sustente que é falsa. Outros, ainda, juram que Freud não é fato e metáfora é poesia. Entre uns e outros, sou aquele que não duvida do que o Manuel é capaz e por via das dúvidas, não como mais pão.

Continua depois da publicidade

Mais lidas

Conteúdos Recomendados

©2024 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software