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“Finish! Assim terminamos mais um ano. Mais ingleses que mineiros”, disse minha tia-avó Luci Lehmann Guaidó Cavalcante nascida em Tatuapé.
De passagem, numa passada de ano que passei por lá, não me lembro ao certo quando (ou quanto, como brincava essa minha tia), falou-nos, éramos muitos à mesa, sobre “o sumiço do povo das terras brasilis”.
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Terras essas que, em andares opostos, eu e ela, ainda ocupamos. “E o sumiço do povo brasileiro, reforçava, era bom. Não deixava de ter um toque civilizador, nos alçando a pós-brazucas.”
Embora, sempre algo me escape, saibam, em minha cabeça sempre tudo é ficção, logo, tudo sempre é real.
E, naquela noite, foi assim, batidinhas de talher de prata na taça de cristal, um apoiar-se de leve junto à cabeceira da távola redonda e tia Luci abriu a boca para o discurso que nunca me esqueci depois de inúmeras tentativas para não mais lembrar-me. Ela tinha força expressiva e coerência histriônica para sustentar o que dizia, defender o que humilhava, revelar o que estava à vista. E tudo no ré sustenido menor descompassado que era o tom do som de sua voz rouca e medieval.
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“Há quem se sinta ainda brasileiro, mas, de verdade, nestes trópicos de neves derretidas, é impossível não nos sentirmos alemães ou dinamarqueses iluminados por god, ‘skirts ladies' e ‘shorts mens’.”
Aplausos entusiasmados, enquanto eu e primo Kick, mudos, lendo pensamentos óbvios.
Tia Luci respirou fundo, pigarreou e continuou. “Antes que achem, e eu sei o que acham dessa camada da sociedade da qual tenho lugar de fala, não sou surda às demandas do populacho, só não acredito que ainda existam entidades assim em território agora todo nosso, essa capitania tão ‘madeixas de Cinderela’. Ou, se existem, não se mostram.
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No Ainstagram (assim que se fala, lembrou) de madame Bragança de Lima, por exemplo, contemplamos apenas a natureza de amazônicas flores em furta cor em que demonstram-se vivas e cheirosas. Então, se existem brasileiros enquanto povo, populacho, não aparecem.
Já na casa de Carlos Henriques Grenivalkir, quando tomamos vinho, acreditem, os serviçais fazem troça e até rimos em conjunto, mas não em uníssono. Os serviçais surgem limpos e delicados, mas, pelo que me consta, não são o populacho. Sigamos. Se existem, prossigo, se esconderam para não mais sofrer da mérito-patologia, a doença da presunção dos preguiçosos, se me permitem o neologismo.” Risadas de longo alcance foram dadas para mais essa análise da tia Luci, enquanto eu e primo Kick continuávamos mudos e lendo pensamentos óbvios.
E a tia encerraria a fala com a conclusão: “Se tudo isso é só a impressão de se viver numa bolha, um brinde ao nosso condomínio de Mercadorias e Futuros.” Risos de se urinar entre todos os convivas.
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De quando em quando, depois daquela noite, enviava à tia Luci, final de ano, um cartão de desculpas pela minha ausência e, no rodapé de mais esse item de contrato social, as palavras de Jean-Jacques Rousseau: “Os gregos encerrados no antro do ciclope ali viviam tranqüilos, à espera de que chegasse a sua vez de serem devorados. Dizer que um homem se dá gratuitamente é dizer coisa absurda e inconcebível (...) Dizer a mesma coisa de todo um povo é supor um povo de loucos: a loucura não faz direito.”
Nunca obtive resposta dos cartões e, há pouco, tia Luci faleceu.
Por sabê-la carola e devota de nossa senhora do deus-me-livre, perguntei a tio Ludwig se pediriam uma missa. Me respondeu com certa impaciência de que não vão à missa, von a Mises!
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