Olhar Filosófico
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Todos os dias faço o mesmo caminho para o meu trabalho. Sou analista com tempo extra, detetive nas horas vagas e problemático em todos os minutos.
Pego a chave que trago no mesmo lado de bolso que faz parte das minhas mesmas calças jeans que são três e possuem a mesma tonalidade e modelo. Levo um lenço de pano na mochila às minhas costas. Sempre para a ocasião de precisar enxugar algum suor, assoar o nariz ou mantê-lo guardado até a próxima lavagem. Intacto.
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Sigo à risca a minha ideia de promover a análise: Olá, como vai? Fique à vontade. Sente-se. Aceita um copo de água ou um chá? (E Nunca ofereço café. Jamais! Pois, pelas minhas práticas, percebi que a cafeína desperta estímulos e direcionamentos que tiram da zona do razoável a minha conversa franca e não robotizada com o meu paciente).
Começo da mesma maneira todas as vezes, ainda que de forma interna, com um suspiro de “Vamos lá, campeão! Você consegue, mais uma vez!” Sorrio sem dar mostras de que poderia ser um gracejo e sigo o preconizado nos ditames do diálogo onde um fala e outro escuta. Elucubro e nem sempre chego a resultados plausíveis e compreensíveis à minha parcela consciente de analista que sou. Faço rodeios com as palavras ditas e direcionadas ao vento e interpreto pelo contexto de quem me diz e pelas técnicas de que herdei.
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Paro e penso depois de todas as falas daqueles que atendo. Não interrompo nem mesmo o silêncio revelador de situações e expressões outras, tão fundamentais quanto as palavras e os sussurros. (Todavia, quando tem café envolvido, antecipadamente ingerido, peço uma parte com delicadeza e falo e executo, em voz levemente audível, as técnicas de respiração divididas para dois).
Às vezes dos sonhos e fantasias, um remorso se mostra pleno, uma angústia se descabela e/ou uma chave acha uma porta. Sou quase um oráculo, porém sem profecia ou sibiladas. Sou um oráculo do tempo presente para os meus pacientes que traçam rotas e caminhos na confiança (ou falta dela) em relação à minha pessoa, minha técnica e minha disposição. Tudo mantenho em suspenso para que o juízo não tente me flechar e colocar a perder a honestidade intelectual da análise e da interpretação. Respiro fundo, mas não devolvo na hora (nem mais tarde) as primeiras impressões que tive. Depois, aos poucos e nos momentos certos, sessões outras e mais outras recoloco a ordem no plano das possibilidades e apontamentos razoáveis. Continuo a “cartilha”.
E continuo e sempre continuo. Ato contínuo daquilo que me esforço para ser e analisar. O paciente da vez aceita o chá e começa se debatendo entre ideias e conflitos. Ouço e anoto (posteriormente). Anoto e anoto e mais uma vez anoto. Ao lado de parte do que anotei escrevo três palavras-chaves para com calma aproveitar ou queimá-las com parcimônia. Que exista insights também bem sei, mas não me precipito ou tenho pressas. Respostas mágicas não existem e deixo claro desde o momento e da forma de pegar o lápis e meu bloco de anotação. Meu teatro honesto e profundo também é o simbólico à eloquência das palavras da minha consciência e dos raciocínios imperativos, feitos da memória, análise do “sub” e do “sobre” daquele que aceitou o contrato da alma enquanto falas coesas ou incertas, ditos e clichês, resmungos e fantasia e sentou-se à minha frente. O chá acabou. Não ofereço mais nada, principalmente, não ofereço café. Sorrio e faço um movimento vagaroso com minha cadeira. Ele, paciente, se levanta. Gravo fixamente a última palavra que me veio à mente junto à “derrama” de desejos, impostos e obediências que me foi passada: pai. Coloco, finalmente, as reticências…
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Respiro e fecho a porta conforme a saída de mais esse. Vou para casa em seguida. Levo as anotações do dia, junto as da semana, recapitulo as do mês e, paciente a paciente, retomo os fios entrelaçados ou completamente soltos às análises iniciais. Sigo o aprendendo o aprendizado.
Um dia, não importa mais qual, pela didática do meu ofício, retorno como quem estava por meses num submarino, contudo, sem tirar os olhos do periscópio. Meu submarino de aço não afunda, fica em terra firme. Analiso outras imersões na verdade. De verdade. Profundas ou não, mas todas dignas da palavra e do diálogo que cura (ou liberta de fato).
Três pontos se sobressaíram na minha descoberta, dos quais, a artimanha infantil de enganar a si mesmo para criar utopias era o crucial para findar parte do processo.
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Ela entrou, não quis de pronto se sentar, mas aos poucos sentou (ou derreteu sobre a cadeira) sem me olhar nos olhos. Chorou por dois minutos. Ofereci-lhe lenços de papel e água (ou chá, não me lembro). Negou com a cabeça e me perguntou se tinha café. Respirei fundo e disse: não. Deveria comprar uma dessas máquinas de cápsula, retrucou. Lhe devolvi um meio sorriso e juntei minhas mãos. Perguntei: O que te trouxe aqui? No que ela revidou: Como? Há dois meses venho aqui! Pois bem, insisti, mas o que de fato te trouxe aqui? Ela ameaçou se levantar, mas deu um passo atrás. A vida que não me recompensa pelas ações corretas que pratico. Mas o que seria essa recompensa?, indaguei (já tinha analisado e reanalisado suas imagens e ideias). No que ela, agora olhando em meus olhos, soltou com firmeza: Minha mãe nunca me deu um abraço. Bom, quando pequena, talvez tenha dado. E daí?! Daí, disse eu, nossa terapia tem algo a lhe contar. A propósito, está também sentindo um cheiro de café?
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