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Uma dor estranha para aquela hora, todavia conhecida desde tempos. João Cabral dissera aos ouvidos desse traço contínuo, laço sem nó, eu sem terra e corpo mole. Preciso. Cabeça, olhos, algum membro. Eis-me aqui ácido subjacente das entranhas do óbvio. "Claramente: o mais prático dos sóis,/ o sol de um comprimido de aspirina:/ de emprego fácil, portátil e barato,/ compacto de sol na lápide sucinta./ Principalmente porque, sol artificial,/ que nada limita a funcionar de dia,/ que a noite não expulsa, cada noite,/ sol imune às leis da meteorologia,/ a toda a hora em que se necessita dele/ levanta e vem (sempre num claro dia):/ acende, para secar a aniagem da alma,/ quará-la, em linhos de um meio-dia." Engole-se em seco. Meu reflexo, copo, cara, água. Espelho e alguma dor didática.
Didática daquilo que é. Um ponto mestre cego. Do passo à ginga, sem espaço. Segurei-me naquele momento. Fiz. E nunca termino. "Uma educação pela pedra: por lições;/ para aprender da pedra, freqüentá-la;/ captar sua voz inenfática, impessoal/ (pela de dicção ela começa as aulas)./ A lição de moral, sua resistência fria/ ao que flui e a fluir, a ser maleada;/ a de poética, sua carnadura concreta;/ a de economia, seu adensar-se compacta:/ lições da pedra (de fora para dentro,/ cartilha muda), para quem soletrá-la." Estrondo. Parlatório.
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E na zona de espera de um símbolo mais concreto, por descuido, total descuido (ou cansaço) comi uma letra. Asseguro-vos que foi mesmo por um completo descuido e não por tagarelice da fala ou do tédio da espera entre o agora e a prova do querer.
Ingerida a letra, não me caiu bem nas entranhas, naqueles miúdos entre o estômago e pedaços flutuantes a circundar os intestinos.
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Era pequena, não arredondada, crescida nas pontas. Parecia ser de fato. Talvez tenha sido uma dessas da nova estilística dos caligrafistas do mundo on-line.
Calmamente, como qualquer um que engasga com um ser estranho dentro da goela e pra baixo, levantei-me, enchi um copo com água e mandei ver. Glub, glub, glub, glub e senti a percepção de que, ao descer um pouco mais, uma sílaba de duas letras havia se formado. E agora?! O que faço?! Pensei constipado das letras.
O símbolo parecia hibernar, nem sinal dava frente à minha expectativa. Alguma dor. Enquanto isso, eu, assustado, não sabia o que estava acontecendo e como resolveria tudo isso. Será que a letra engolida voltaria à garganta, tomaria a língua e se suicidaria no som ou seria expelida por outro orifício não programado para receber palavra? Imaginem concreto. Tudo que temos. Alguma dor persistente. Situação delicada. Novamente, botão do filtro apertado e mais um copo de água a inundar meu corpo dentro e… nada. Todavia, desta vez, não senti algo de novo. Permanecia apenas a sílaba calada, recém-formada e mal ajeitada na organização interna do meu ser enquanto coisa.
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Respirei fundo, olhei fundo para os lados fundos e zás, o símbolo aparece como som, mas com alma de imagem. Pude senti-lo tiro, no entanto percebi que, tendo engolido letra, me faltava à voz qualquer palavra. E como defini-lo, como entendê-lo, como expressá-lo em outra coisa ou analogias? O mestre está morto. Dono das analogias e analíticas. Da saliva seca. E engasguei. Por um momento a barriga me ardeu e senti mais claramente a formação de palavra. Quatro letras e numa delas o sinal do A. E o símbolo ali. Pra mim. Feroz e impaciente, embora sem força razoável para se impor. Símbolo de interpretação.
Respirei fundo por mais três vezes, mas nada das mil caras da minha voz se manifestando. E antes do último copo de água que tomaria, o símbolo se foi, deixando no rastro, como num grande rabo de cometa, uma história não escrita pautada no esquecimento.
Bebi com pressa. E mais pressa. Por quantos símbolos mais esperaria?
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Sentei-me só e pedi calma a mim mesmo. Respirei, respirei, respirei.
A palavra se formava pregada nos dois olhos da minha indecisão. E me caguei em copas.
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