Olhar Filosófico
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A memória, escritora do ser. Como um ar sem caminho ou muro, carrega consigo os sussurros do passado, o sibilar do oráculo que atinge de setas e incertezas o futuro. Ah! Memória. Mutável, caprichosa, pedra de toque da vontade e da escolha.
Acho que me lembro dos poetas gregos tecendo seus versos. Homero, Hesíodo, cantos épicos através dos séculos, heróis e deuses, batalhas e amores angústias, sobretudo angústias. Na vã tentativa de dar respostas ao tempo do sem fim que habitamos. Vejo Aquiles que não reflete, mas age. Vejo Odysseus que age, reflete e se atira nas aflições do tempo.
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Mas a memória é um labirinto tentacular Eu, perdido, peço sua benção. Mas sobre o que eu mesmo falava? Eram os romanos, não os gregos, os mestres da memória? Cícero, com sua técnica, pelos palácios da mente para recuperar informações. Tácito, narrando a grandiosidade do Império Romano com a precisão irmã dos pontos das bordadeiras. Era apenas isso. Um café e esqueço. Ele me agita, já não lembro.
Ou a memória não é dos letrados. Nas culturas africanas, a história gira em outro ritmo compassado. São tambores, nas vozes dos gritos e gozos, que fazem a narrativa do passado encharcado de tradição oral. Memórias ancestrais, a música, a dança, o som do próprio corpo. Ouvidos atentos e impérios ruindo. A caravana passa e nada tira esse lugar do seu centro espacial. Espaço sideral. Ninguém precisará dos seus modos europeus onde nas casa já se tem o canto de si. Oxalá, mais rápido os impérios caíam.
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Esqueci-me. Névoa das lembranças, meu terno o tenho mal passado para todo o sempre. Nunca estará pronto para vestir-me enquanto lei, regra. No esquecimento uma traição à vista, mente sã corpo cansado, essa ordem do tempo, em frente, que não se pare logo ali por temor aos passos. Do que falava minha palavra?
Duvido agora de Homero e Tucídides. Não poderiam ter feito o que fizeram. Num registro a impossibilidade do novo absurdamente real. Ainda que a ciência goste, eu acho que era poeta, portanto não me importa. Perdi as mãos e as pernas naquela esquina. As memórias insistem em permanecer diluídas em bicarbonato de sódio. Agora rabisco minhas tintas secas, usadas e transferidas dum mineral do fogo.
E a memória em construção, conto e canto para frisar o céu. Muda que muda, molda que passa o sentido para o carimbo do pó, dos pés.
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Esqueci do que dizia. Antes dos poetas e historiadores de fumaças. Esqueci o memorável. Sentei-me à beira do rio do esquecimento e depois escolhi nadar até que perdessem de vista minhas braçadas e minha cabeça a cutucar a corrente. Minha cabeça que sempre já sabe o que pensar. Meu terno para passar, amarrotado para vestir. Me adaptei ao sopro que os gregos chamavam anima. Quais gregos? Do que mesmo eu falava?
Talvez o signo do esquecimento seja a revolta contra o planejado, contra as fases sempre certas da Lua. Talvez seja isso a dança do desespero. Talvez o sonho seja uma pedra num fundo de poço ou de lago. Talvez a memória barbarize tudo. “Talvez o mundo não seja pequeno/ Nem seja a vida um fato consumado/ Quero inventar o meu próprio pecado/ Quero morrer do meu próprio veneno”. E do que falávamos mesmo?
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