Olhar Filosófico
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Por acaso, estava ali. Naquele local e hora. E na presença de uma força embebida do etéreo ou de éter, não sei agora precisar, me coloquei à disposição e entregue totalmente à fofoca para ouvir quatro caras esquisitos, de línguas estranhas, com roupas estranhas, quase que numa espécie de festa estranha com gente esquisita. Eu não tô legal, não aguento mais birita! Mas eu firme, embora prestes ao vômito e ainda longe da boca da noite.
Um deles, o grego metrossexual, havia pedido um cálice de vinho com um toque de água, cuspia mais do que qualquer outra coisa, outro, o francês metidinho, pediu uma champagne barata, nem tomou e reclamou do gosto, um terceiro, o segundo francês e de fala mansa, foi o único que comprou um petisco, mas só para puxar papo com a garçonete e ignorar parte do que diziam os demais e, por fim, o quarto, o inglês fanfarrão, mais riu e tirou sarro de todos que tenho certeza que já chegou bêbado para não ter que gastar com preliminares alcoólicas para um bate papo mais intenso. Eu, ah! Só tomava tudo que eles me ofereciam. Tava tão enturmado que já era da trupe da loucura, uma carreta furacão da filosofia alheia e das notas dum samba de rodapé.
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Mais cheiroso que os demais, Aristóteles, esse era o nome do grego, já resmungando sobre a importância do homem e da política, tomou à frente e, daquilo que deu para ouvir, disse: “...o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade, e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão. Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. (...) a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.” (Política. 1a. ed.. - São Paulo: Editora Madamu, 2021).
David, o inglês gordinho, riu, me acenou, concordou, riu de novo. Blase (Bleise ou Blasé), assim se chamava um dos franceses de sotaque indefinível, pensativo, voltou aos papos com a garçonete. Renê, o outro francês, arrogante e de bigode, desdenhou, apoiou, mas chamou a atenção para a desconfiança de tudo como base de todos, cidadãos, reis e filósofofos: “Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.” (Meditações concernentes à Primeira Filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1973)
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O grego já babava meio sonado, meio atônito, meio com raiva, meio de inveja. David riu, me cumprimentou novamente e esperou Blaise para trocar palavras. Como o francês pouco ligou a esse apelo, o inglês soltou a letra: “O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequada nutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança de suas aquisições. O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da vida humana, o submete necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um gênero misto de vida como o mais apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de não permitirem a nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. (...) Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um homem.” (Investigação acerca do entendimento humano. Versão eletrônica. Edição: Acrópolis)
O bar aplaudiu de pé. Eu assobiei e quase apanhei do grego e do metidinho de bigodinho. Eis que Blase (Bleise ou Blasé, não sei ao certo), o francês carecabeludo quase bonito, deitado numa das mesas sem garçonete e sem ninguém, pediu silêncio. Levantou o dedo fura-bolo da sua mão esquerda e emendou após um arroto respeitoso: “O coração tem razões, que a própria razão desconhece. (...) é seguindo a razão que você ama?”
A partir desse ponto não lembro de muita coisa. Mas já estava em casa à meia-luz o som de Jhonny Bravo e na vitrola whisky e um bongô.
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