Olhar Filosófico

Em parte traumas, em parte partos

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Não que respirasse já antevendo o próximo suspiro, mas, de fato, algo acontecia comigo ali paralisado. Era um sonho? Um problema nos nervos? Falta de cálcio? Estresse reavivado, outrora reprimido, do ridículo tombo que tomei jogando bola em 86 na final do campeonato mirim entre a rua de baixo com a rua de cima? (Nossa, como fui lembrar disso, preciso anotar se foi real ou é mais uma invenção da minha cabeça. Anoto agora?).

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Acordei. Ufa! Mas era um sonho, então? Ou agora acordei dentro do sonho em que refletia sobre o movimento da minha respiração? Acordei, de novo. Ou foi impressão? Sinto ainda o ronronar em meu peito. Mas agora sou um gato? Como quando pensei que de fato fosse, depois daquela tentativa de pular o muro para pegar um girocóptero caído na casa do vizinho e do alto observei que não conseguiria chegar ao final do objetivo e me vi preso e atordoado entre voltar de costas, “desescalando”, por assim dizer, sem olhar para o chão ou saltar como um felino para chegar com delicadeza ao mesmo lugar de onde comecei a escalada? (Preciso realmente anotar isso, pois lembro que me espatifei, como prova, trago cicatrizes reais, reais mesmo). Ou não trago? Trago? Mas sei também que não fumo! Então é sonho! Sonho! Mas a padaria ainda não abriu para essa minha fome. 

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Acordei? Suando, meio assustado, meio kantiano. Lavei o susto, enxuguei o rosto, escovei a mente e de supetão, declamei para o meu reflexo ainda desbotado, um texto antigo que pensava ter escrito ontem, na noite sem sono na mente do meu cão que latia baixo: “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.” Mas isso é Kant, terminei aos gritos. Logo após todo o ocorrido, dormi cartesiano e sonhei como Copérnico.

Então é um sonho mesmo! Eu mesmo teria dito se estivesse acordado. Acordei dentro do quarto da casa que morei em algum lugar que não me lembro. Só recordo do fato dos tijolos alaranjados da mureta em minha porta. Estranho, isso não pode ser real. Havia uma porta laranja que levava à rua triste daquelas manhãs de domingo. (Anotarei tudo isso, preciso mesmo trabalhar minhas memórias roucas para completá-las com as vozes dos fatos). Sussurrei, alerta, uma melodia de Immanuel: “A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha, continuem no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor.” O relógio voltava a Kant! Despertei iluminista, pensei, sonhei? 

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De súbito, o que me pareceu um enjoo pela manhã do tempo, me fez expelir mais imagens formadas sons em palavras e sentia em minha veia, outra vez, o século XVIII: “Para este esclarecimento porém nada mais se exige senão liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocinei, mas pagai! O pastor proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiseres,e sobre o que quiseres, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento? Qual não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento entre os homens.” E kantianamente dormia-me a inocência enquanto uma nuvem formava uma copa de árvore e uma árvore formava-se aos meus pés. Acordado permanecia. Permanecemos e com traumas. E feridos, lambendo o sonho, vão esclarecidos os meus pensamentos: “Se for feita então a pergunta: “vivemos agora uma época esclarecida?", a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento”. Falta ainda muito…” E novamente me fechei em Kaliningrado! Mas de onde me veio isso! Sonho? Dores do parto? Parto, e, afoito, acordo tranquilo. (Preciso muito anotar tudo isso, já me parece obsessão). Acorda. Acorda. Alguém ordenava?

 

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