Olhar Filosófico

É noite, não tenha medo

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Escuro onde olhos não brilham. Sem reflexo a natureza é morta. A vida caminha intranquila à busca de um ar que a sustente. Mas sobra o medo. Medo do próximo passo. De buscar o interruptor que faz o papel do acendedor de luas e rebrilhos de outros sóis. E segue o medo que nos persegue.

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Não foi por acaso que nas diversas narrativas mitológicas, o obstáculo de se buscar sentido no mundo era a perda da capacidade de identidade por diferenciação, a escuridão como divindade grotesca que a tudo iguala sem forma e nos impede a presença de ser visto, intuído, pensado. O que nos bloqueia naquilo para que nascemos ou tendemos. Noite é terra de ninguém, fruto de uma árvore só, céu nebuloso dentro da gente.

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Não há dúvidas, por outro lado, de que o medo é também carinho da natureza para não se morrer jovem, emoção adaptativa elogiada pelo senhor Charles Darwin, onde organismos buscam a fonte da vida para nela, outra vez, permanecerem. Pois todo organismo grita, dentro e fora, que não quer morrer.

Mas o medo há de se cercar ou vira vício. Acostuma a alma a se enterrar no corpo que se horizontaliza e não cresce, não realiza a fotossíntese ou aquilo que animais imploramos liberdade. Acerca do medo, a cerca. Assim que tem de ser. Cobrança de atitude. Controle daquilo que nos desmonta se ficarmos emocionados com o tempo que passa e assusta.

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“Não tive tempo para ter medo”, como mais que um dever, foi viver Carlos Marighella suas Mil Faces De Um Homem Leal: “Todos nós devemos nos preparar para combater/ É o momento para trabalhar pela base/ Mais embaixo pela base/ Chamemos os nossos amigos mais dispostos/ Tenhamos decisão”.

Cercar o medo. Coragem. Faz parte do pacto chamado amanhã. Coragem. Nas mãos dadas ao cumprimento um aceno de cuidado. Eu zelo pelo teu sono, mas não se aliene pelo mal jeito de buscar a convivência transferindo responsabilidade. Reze pelo meu medo e dou um salto do tempo presente. Juntos. Sem transferências, pois a angústia também é um ativo no banco de cada vivo. Coragem. Como Sartre lembra “ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que (possamos) receber ou aceitar. (Estamos) inteiramente (abandonados), sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim, a liberdade não é um ser: é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser”. Do nada ao liberte-se também. A angústia está, mas nunca fica se escolhermos além do medo.

Sustentar e abater, eis o medo em estado bruto. Paradoxo emocional entre dádiva e desgraça. Vida segue nessa corda bamba que vai ficando mais firme se o andar é certeiro e aponta para a esperança. E como num filme de terror, brutal, desconcertante, tudo é teatro. Cada monstro um recurso visual, uma câmera, um efeito e na nossa cabeça a mágica é feita. Apertar o pause e analisar o ridículo da cena. O controle remoto é limitado, mas está na mão e na escolha da pílula para desnudar a Matrix que por dentro é só um suco de medo, algoritmos de desespero.

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Salve, mago da língua, nativo dos sonhos, Belchior num nordeste de gente: “Eu tenho medo e medo está por fora/ O medo anda por dentro do teu coração/ Eu tenho medo de que chegue a hora/ Em que eu precise entrar no avião/ Eu tenho medo de abrir a porta/ Que dá pro sertão da minha solidão/ Apertar o botão, cidade morta/ Placa torta indicando a contramão/ Faca de ponta e meu punhal que corta/ E o fantasma escondido no porão”.

Pular a etapa da sobrevivência acomodada, fato máximo é existir e escolher, afinal, sobreviver é só espaço ocupado, refletir é sentir-se pleno, ainda que nos falte sempre aquela coisa “Que dá dentro da gente e que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente de uma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar”.

Uma cerca para cada medo e seremos livres e sustentáveis. Energia não desperdiçada, limpa e renovável. Não viver de medo em medo, mas nas artimanhas dos deuses que criam suas histórias de força. Medo que se nomeia é monstro que se infiltra nos poros mas já não assusta.

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