Olhar Filosófico
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Ainda lembro, um tanto traído pela memória, como se há pouco fosse se tivesse realmente sido. Ou foi? Fato é que ainda recordo de algo que mais ou menos ocorreu da forma que ora narro. Mais narro do que um tempo exato, bem verdade. Aliás, verdade palavra que não mais usarei aqui. Minto? Talvez. Sempre? Nunca. Primeiro porque tenho lá minhas dúvidas de tudo um pouco, segundo porque a verdade me dói terminativa, palavra final, senso de finalidade e amém. Quero o desdém, mas não desconfio tanto da certeza, que grita como momento e ajuste do espaço atual. Até não ser mais, é claro.
E voltando à meia volta da lembrança que dizia, fato é que assim digo.
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Aluno que tive, difícil para os parâmetros de uma sala de aula em que aprendemos que aluno cala, professor fala e o aprendizado acontece. Mas não ele. Aluno meu que tive e difícil no temperamento.
Para tudo um “porém”, “um não concordo”, todavia, completado pelo meu “e daí?” Mostre as armas nesse duelo, jogue na mesa as razões para a nossa, sempre nossa, refeição antropofágica e filosófica. E ele era fraco de argumentos, mas bom de briga. Balanceava o destino dessa maneira.
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Um dia falava eu, sempre eu, sobre a morte de Sócrates hoje. Morreria? Já morreu e em condições melhores do que as de agora, mas, hipoteticamente, morreria? Eis que ele vinha com seus dois mantras alucinados: pra quê tudo isso? Em seguida, é lógico que morreria! Sabia eu que seria filósofo em construção, e foi. Surpreso o encarava e dizia, por que morreria? E sabendo que não esperaria pela resposta pronta já subentendida, inventava, morreria porque foi trouxa! Não se aliançou. Vida é fazer aliança, tramar junto com quem fecha contigo. Puxa, como era um sujeito em construção esse aluno. E cínico, no sentido cínico da palavra.
E assim era. Seja com Sócrates, Platão e Aristóteles, aliás, por esse nutria um certo respeito por ter detonado com seu mestre, na vida e na morte. Gargalhou certa vez em que por descuido, soltei no ar entre as entrelinhas das ironias que Aristóteles deveria ter mais respeito por Platão, seu mentor e orientador do legado. Só ele entendeu. E riu. Segundo o próprio, a melhor maneira de respeitar era ultrapassar. Gargalhei. Senti também o vento inverso, só eu entendi enquanto Mariana e Carlos conversavam e Dione mascava chiclete e fazia bola. Me controlava para a aula não virar um pingue pongue de saques e raquetadas entre dois jogadores que faziam das cabeças alheias, mesas de sustentação. Valmir continuava a dormir num canto e Igor a atacar bolinha de papel por debaixo da mesa como se fosse uma estratégia genial para não ser visto.
Num dia normal e sem chuva brava, numa sala de aula convencional e com um professor deveras tedioso como fui sendo, o conteúdo que me tocou explicar era Kant, vida, obra e pensamento. Superficialmente, integralmente de leve. O filósofo alemão mais iluminista que vela com febre de Sol, cansativo para jovens desavisados do século XVIII, despertou nele um outro olhar. Fogo, receio e desencanto. O excerto usado e escorrido mais de minhas mãos burocráticas do que de minha cabeça era a questão da menoridade. Ainda que João Antônio tivesse exaltado a voz, “Dezesseis anos tá bom”, achando que falávamos de menoridade e maioridade penal, ele, meio estático, meio estético, se clareou. Lia sussurrando cada linha escrita na lousa. Lembrou de uma discussão que fizemos em sala sobre Montaigne que o remeteria àquele momento de agora. Eu não lembrava. Nunca lembraria de quase tudo. Mas ele ficou preso em Kant.
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“A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma parte tão grande dos homens, libertos há muito pela natureza de toda tutela alheia, comprazem-se em permanecer por toda sua vida menores; e é por isso que é tão fácil a outros instituírem-se seus tutores. É tão cômodo ser menor. Se possuo um livro que possui entendimento por mim, um diretor espiritual que possui consciência em meu lugar, um médico que decida acerca de meu regime etc., não preciso eu mesmo esforçar-me. Não sou obrigado a refletir, se é suficiente pagar; outros se encarregarão por mim da aborrecida tarefa. Que a maior parte da humanidade (e especialmente todo o belo sexo) considere o passo a dar para ter acesso à maioridade como sendo não só penoso, como ainda perigoso, é ao que se aplicam esses tutores que tiveram a extrema bondade de encarregar-se de sua direção. Após ter começado a emburrecer seus animais domésticos e cuidadosamente impedir que essas criaturas tranquilas sejam autorizadas a arriscar o menor passo sem o andador que as sustenta, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentam andar sozinhas. Ora, esse perigo não é tão grande assim, pois após algumas quedas elas acabariam aprendendo a andar; mas um exemplo desse tipo intimida e dissuade usualmente toda tentativa ulterior. É, portanto, difícil para todo homem tomado individualmente livrar-se dessa minoridade que se tornou uma espécie de segunda natureza. Ele se apegou a ela, e é então realmente incapaz de se servir de seu entendimento, pois não deixam que ele o experimente jamais.”
E aquele filósofo, dono dessas palavras aqui evocadas, mudou mais um homem à humanidade. Ainda que pudesse não concordar, a isca estava lançada.
E depois que descobriu o famoso imperativo categórico e toda ética kantiana, esse meu aluno abandonou os estudos e se fez um tipo novo de professor.
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Da última vez que soube dele, trabalhava numbanco, sempre sentado, e, ainda, transformado pelas leituras que ouvira e fizera de Immanuel Kant, estava livre de um fardo que sentia que carregava.
Só então percebi que havia entendido tudo errado, tudo muito rápido. A admiração o cegara e ele, liberto, estava posto a ferros por todos os lados. Para onde ia levaria para sempre essa prisão. Estava acorrentado à cabeça de Kant e não mais a dele, de briga, estava ancorado na verdade (sempre ela) e não mais ousaria soltar as amarras no portoem que pisara.
Como previra o próprio filósofo alemão, “É por esse motivo que um público só pode aceder lentamente ao Esclarecimento. Uma revolução poderá talvez causar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão cúpida e ambiciosa, mas não estará jamais na origem de uma verdadeira reforma da maneira de pensar; novos preconceitos servirão, assim como os antigos, de rédeas ao maior número, incapaz de refletir.”
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Mas se é que me lembro disso tudo, ou então que tenha sido dessa maneira.
O nome desse meu aluno não me recordo mesmo. E, hoje, pouco importa.
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