Olhar Filosófico

Duas vezes Cazuza, mil vezes Cazuza

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Dos grupos musicais do chamado rock (pop) nacional que mais ouvi nos meus anos 90, sem dúvida nenhuma, foram Legião Urbana e Engenheiros do Hawaii.

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Por influência de familiares e amigos, ou da tv que nos consumia como num teatro dos vampiros, ou dos  jovens de classe média que, como eu, éramos sempre uma banda numa propaganda de refrigerantes ou, ainda, por parecer que todos tínhamos os mesmos defeitos e por sabermos tudo a nosso respeito. Enfim. Não sei, fato é que esses dois grupos me vinham aos ouvidos como a brisa constante batendo nas pedras nesse vento no litoral onde me abrigo agora.

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Quando ousava intercalar esses sons do rock (pop) nacional em meus tímpanos, invariavelmente, me subia pelas veias da ira poética, a musicalidade de Raul Seixas (esteticamente popular, filosófica e única) e Cazuza (visceral e provocativa). Ambos me tiravam, pouco a pouco, das análises mais subjetivas promovidas pela Legião Urbana e aprofundavam pontos que, até aquele momento, entremeavam as composições que ouvia dos Engenheiros do Hawaii.

De Raul, que comecei tarde, passei a ouvir tudo e mais um pouco, discografia completa, achados do seu baú, entrevistas etc. De Cazuza, que descobri tarde, segui com paixão racional fulminante.

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No que diz respeito a Raul, o compositor mais citado nestes meus artigos, diga-se de passagem, muitas outras citações virão. De Cazuza, também muito lembrado por estas linhas tortas, gostaria de levantar dois momentos numa ordem de composições históricas para todos nós, em especial, para os brazucas de plantão que cantam o hino, em lágrimas, com a mão no peito a torcer por Neymar e sua trupe, ou, ainda, entoadores do hino pátrio para pneus e fardas penduradas em varais a secar no relento.

Cazuza é muito grande. Poeticamente grande. Politicamente grande. Humanamente grande. Viva Cazuza, sempre!

Com Arnaldo Brandão, na letra “O tempo não para”, produzida e gravada em fins da década de 80, refletiu e sintetizou a luta diária de cada brasileiro, minimamente com bom senso e instinto de sobrevivência, frente a herança maldita da ditadura militar brasileira que, terminada há pouco, prosseguia na corrupção e conservadorismo por meio de seus lacaios e apoiadores ainda no poder após a tal “abertura”, “Eu não tenho data pra comemorar/ Às vezes, os meus dias são de par em par/ Procurando agulha num palheiro/ Nas noites de frio é melhor nem nascer/ Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer/ E assim nos tornamos brasileiros/ Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro/ Transformam um país inteiro num puteiro/ Pois assim se ganha mais dinheiro”.

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E o refrão, avassalador, lembrava a todos os vira-latas e lambe-botas, “A tua piscina tá cheia de ratos/ Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para/ Eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades/ O tempo não para/ Não para, não para”.

Um tempo depois, repleto da mesma indignação física, mental e poética, Cazuza, acompanhado de George Israel e Nilo Romero, compunha “Brasil” , ainda um retrato da política e situação brasileira nesse mesmo período histórico. Um marco pela excelente redação, musicalidade e por ir além de uma atitude da então nova geração musical dos anos 80. Dentre os versos marcantes, cito esses: “Não me ofereceram/ Nem um cigarro/ Fiquei na porta/ Estacionando os carros/ Não me elegeram/ Chefe de nada/ O meu cartão de crédito/ É uma navalha/ Brasil!/ Mostra tua cara/ Quero ver quem paga/ Pra gente ficar assim/ Brasil!/ Qual é o teu negócio?/ O nome do teu sócio?/ Confia em mim”.

Cazuza precisa ser ouvido como obra contínua. Uma epopeia em que Aquiles, Heitor, Páris e Odysseus não são protagonistas, mas, os enxotados, os pivetes, os “Pixotes” marginalizados e empobrecidos, todos os sobreviventes de tempos ruins. Não há flecha sem alvo, raiva sem poesia, justiça sem tribunal, pois, no final das contas, “Só as mães são felizes/ Porque nos dão a vida/ Só as mães são felizes/ Porque podem nos dar a vida”.

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Não sei por que, sempre tive para mim que o gênio de Plínio Marcos (o “daimon socrático” que procuro sempre ouvir), de alguma forma, habitava a mente de Cazuza. Salve nosso grande Agenor de Miranda Araújo Neto!

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