Olhar Filosófico

Dor de cabeça

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A cabeça ainda me doía e não sei se consigo, ainda hoje, determinar bem a razão. Talvez, por justamente me esforçar nesse defeito nosso de causa ter para tudo. Do universo aos traumas de infância que permanecem na vida adulta. De imediato, necessidade ou desespero do intelecto vacilante, me agarro de hábito ao filósofo David Hume : “Para convencer-nos, entretanto, de que todas as leis da natureza e todas as operações dos corpos, sem exceção, são conhecidas apenas por meio da experiência, bastarão talvez as seguintes reflexões. Se um objeto nos fosse apresentado e fôssemos solicitados a nos pronunciar, sem consulta à observação passada, sobre o efeito que dele resultará, de que maneira, eu pergunto, deveria a mente proceder nessa operação? Ela deve inventar ou imaginar algum resultado para atribuir ao objeto como seu efeito, e é óbvio que essa invenção terá de ser inteiramente arbitrária. O mais atento exame e escrutínio não permite à mente encontrar o efeito na suposta causa, pois o efeito é totalmente diferente da causa e não pode, consequentemente, revelar-se nela. (...) Uma pedra ou uma peça de metal, erguidas no ar e deixadas sem apoio, caem imediatamente; mas, considerando-se o assunto a priori, haveria porventura algo nessa situação que pudéssemos identificar como produzindo a idéia de um movimento para baixo e não para cima, ou outro movimento qualquer dessa pedra ou peça de, metal?”

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E só a cabeça doía. A consciência, a razão, alma, o espírito, a mente (e chamem como quiserem) doíam também em uníssono formando, compondo, só a minha cabeça que doía.

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Na hora, fazia música lá fora e tinha me preparado para, por via das dúvidas, levar um casaco e um guarda-chuva. Em algum dia antes, não me recordo exatamente, minha cabeça esfumaçava, deram a previsão que viria junto ao excesso sonoro de quedas musicais, uma revoada de unicórnios selvagens. Com a dor de cabeça, devo ter deixado de fora fatores importantes de caráter mais interno. 

Se sairia, não sei, esperei o tempo firmar, preparado e sentado no sofá que possuo no abrigo da casa. Dor forte que parecia ter partido de uma suposta ideia abstrata que, por hábito (lembro-me sempre do filósofo que me acompanha), sempre buscava na imensidão desse cinza da nossa inconsciência. Uma ideia de morar no mato junto a lobos, macacos e aves multicoloridas que me fariam ser à presença de um código que tudo decifrasse. A dor talvez (hipoteticamente) viesse realmente daí. O cérebro é um carrossel energético de criações possíveis e cobra, sem erro, um preço alto por isso. Seria o meu valor a mais esse padecimento?

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Percebi, ainda sentado, pois, definitivamente me pareceu que não sairia mesmo, um brilho com certa intensidade no teto da sala. Senti-me, ainda sensato, em luminescência, ofuscando meu reflexo num espelho que me vigiava e ficava ao lado da televisão que mantinha no cômodo mas já não ligava mais. 

Estranha toda essa dor. Razão, alma, consciência e tudo abstratamente.

Fechei-me todo em olhos e permaneci atento àquela aflição. Não era efeito de alucinógenos ou medicação equivocada. Era estranhamento em dor à minha existência plena. 

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Segui, em tensão, por descuido, a novidade de Tim Maia (direto na altura dos ouvidos): “A vida é o maior mistério e minha mente o maior mistério da vida.” Assim, de pronto, sem defesa ou analgésicos, desisti da dor e ela se foi. Eis que tudo já ia tarde na quietude do vento da alvorada. 

Infelizmente, sem atestado que garantisse meu estado de toda miséria vivida, chegou o ponto do emprego e durante aquele dia (em diante) voltei ao padrão de tempo contado gregorianamente na burocracia dos dilúvios e desperdícios. Viveríamos na cidade uma seca de 23 dias.

 

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