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Na meia-luz cinzenta do submundo onde Hades coordena o cosmos dos sem-matéria, no lugar em que mortalidade se verga como bambu sem raiz, duas sombras, vultos ou indivíduos distintos, opostos e contraditórios em aura, se aproximaram. De um lado, o filósofo ateniense de sandálias envelhecidas, calombos pelo corpo denotando as marcas dos tapas de Xantipa e uma túnica simples, Sócrates, com olhos gastos mas penetrantes, sorriso pálido mas ainda irônico. Do outro, o sofista de Siracusa, adornado com vestes luxuosas e jóias cintilantes, com uma oratória inflamada e gestos grandiosos brincando entre o fogo e as sombras no fundo do que poderia ser o tempo todo a vasta parede de uma caverna, Górgias de Leontini!
Sócrates: Górgias, meu velho amigo, parece que nos encontramos novamente, agora sob o signo de Hades e o cansaço de uma vida longa.
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Górgias: Sócrates! Que surpresa encontrá-lo neste reino das sombras. Admito que não imaginava que um filósofo como você sucumbiria às fraquezas da carne.
Sócrates: A morte, Górgias, é apenas uma etapa natural da existência. E neste plano etéreo, finalmente podemos ter uma real discussão, sem as distrações do mundo mortal.
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Górgias: Uma discussão? Sobre o quê, meu caro Sócrates? Para que discutiremos? Por acaso seus aposentos não lhe convém? Acha que errou o endereço?
Sócrates: Sobre a verdade, Górgias. Mas admiro seus gracejos. E confesso que ainda me impressionam por virem de alguém similar a uma planta, tapado feito cavalo chucro. Sobre o que discutiremos senão pela busca incessante do conhecimento e da justiça? E, ainda, sobre o papel da retórica e da filosofia na vida humana?
Górgias: Ah, Sócrates, sempre com seus temas abstratos! Sua metafísica do absurdo. Prefiro a eloquência da palavra, a beleza da persuasão, a organização do vocabulário, a impostação da voz ao invés de definições vazias e argumentos enganosos. Levou uma vida e não aprendeu nada?
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Sócrates: Górgias, deixando de lado todo seu pavoneio com as palavras, acredito que a verdade, mesmo que árida e incômoda, é a base para uma vida virtuosa e justa. A retórica, sem o lastro da razão e da ética, é apenas um instrumento de manipulação e poder. Se beneficia por um lado a imediatez, por outro não sacia a angústia.
Górgias: Angústia? Manipulação? Poder? Meus ensinamentos visam libertar o potencial humano, despertar a paixão pela palavra e a busca pela excelência! Por tudo isso me beneficio, me sacio e me lambuzo.
Sócrates: Mas qual é a sua definição de excelência, Górgias? Enriquecer-se? Alcançar fama e reconhecimento? Ou alcançar a sabedoria e a verdadeira justiça?
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Górgias: A sabedoria, Sócrates, é um conceito vago e relativo. Seu sentido mais usual é muito pouco perto daquilo que busco e conquisto. Meu corpo é o semblante certo das minhas conquistas.
Sócrates: E o que dizer da alma, Górgias? Da busca pelo bem e pela verdade? Ou isso é irrelevante para os seus sofismas?
Górgias: A alma, Sócrates, é apenas um pó rarefeito, uma ilusão efêmera, um sopro que quando cansa o pulmão que assopra, retorna ao sem sentido de onde veio. O que importa é o mundo material, o aqui e agora, e aí a retórica reina suprema. Dela é que sai a ciência, a música, a oração e a face da inteligência.
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Enquanto Sócrates e Górgias se digladiavam em argumentos, Hades observava a cena com interesse. Ao seu lado, Hermes, o mensageiro dos deuses, acompanhava a disputa com um sorriso divertido.
Hades: Interessante, Hermes. Parece que nosso submundo está prestes a presenciar um duelo épico.
Hermes: Sim, meu senhor. Sócrates e Górgias, dois dos maiores intelectuais da nossa Grécia, finalmente frente a frente. Pensei até se não seria interessante providenciarmos uma piscina de gel e duas tangas para ver os dois se esmurrando de argumentos.
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Hades: Hermes, Hermes, como você é engraçado e… safado! Me poupe dessas imagens horrendas. Agora, quem você acha que sairá vitorioso?
Hermes: É difícil dizer, meu senhor. Sócrates, com sua lógica implacável e busca pela verdade. Górgias, com sua oratória bem desenvolvida e carisma inegável. Uma batalha acirrada, sem dúvidas.
A discussão entre Sócrates e Górgias se intensificava, com ambos os lados defendendo seus pontos de vista com fervor. Deuses e deusas observavam a cena com um quase interesse, divididos em suas preferências e apostas. Apolo, deus da luz e da razão, torcia por Sócrates. Afrodite, deusa da beleza e da persuasão, defendia Górgias.
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E depois de dois segundos que em cronômetro olímpico durou 334 anos sem noites, um grito de enfado e falta de paciência.
Zeus: Basta! Esta disputa já se prolonga por muito tempo. É hora de decidirmos quem é o vencedor.
Hera: Concordo. Que cada deus e deusa vote em seu favorito. E ai daquele que se opuser ao certo daquilo que imagino.
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Ares: Eu voto em Górgias! Um verdadeiro líder precisa saber como usar a palavra para conquistar e dominar. Ainda que líder mesmo não seja, meu cansaço me impede de raciocinar mais do que isso.
Atena: Eu voto em Sócrates! A sabedoria e a razão são os pilares de uma sociedade justa e próspera, tal qual a Ateniense…
No que foi interrompida por Dionísio, que ria feito um cachorro.
Dionísio: Sócrates, por um acaso, foi condenado onde sua tapada?! E ria de se urinar nas pernas.
E há quem diga que Platão virou cosmonauta e Aristóteles charlatão e que Sócrates e Górgias nunca existiram de fato. Tudo devaneio dos olimpianos. Há quem diga e faça fé.
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