Olhar Filosófico

Descartes está morto e eu ainda sonho

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Não me peça mais a peça daquele quebra-cabeças que sempre me falta peças para completar. Não peça, querida, não peça aquela pecinha, aquela peça, sim?

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Comprei cinco esferas estranhas que remontam ao passado de meus tios quando ainda jogavam bolas de gude: de vidro, aço ou aquelas chilenas e coloridas. E as tais esferas me consomem de angústias, pois elas sempre se encontram na imagem central daquele jogo de peças de que já falei: o quebra quebra quebra cabeças.

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E digo tudo isso cartesianamente, embora não me importe com a hipérbole. Sigo sim em linha reta para tentar fechar aquele ciclo roto e maltrapilho, mas meu ciclo de peças (aquelas e aquela já ditas) e falas soltas.

“Por exemplo, que agora estou aqui, sentado junto ao fogo, vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas semelhantes. Em verdade, qual a razão para que possa negar essas próprias mãos e todo esse meu corpo? A não ser talvez que me compare a não sei quais insanos, cujo cérebro foi a tal ponto afetado  pelo  negro  vapor  da  bílis  que  constantemente  asseveram  ou  que  são reis, sendo paupérrimos, ou que se vestem de púrpura, estando nus, ou que têm a cabeça feita de barro, ou que são inteiramente cabaças ou confeccionados em vidro. Mas eles são dementes e não pareceria menos demente do que eles, se neles buscassem algo como exemplo para mim. Ainda bem!”

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Digo-o repetindo as frases exatas do francês já citado! Não peço Descartes como muito se pediu em 1968 naquelas ruas de uma Paris perdida de si mesma (e sempre estará assim); peço por ora cautela cartesiana e ironia matemática. Estupidez e quebra-cabeças de peças falsas, peças reais, mas sempre em falta naquele momento de formar as esferas e aquele retângulo enquadrado. 

“Agora, no entanto, estou certamente de olhos despertos e vejo este papel, e esta cabeça que movimento não está dormindo, e é de propósito, ciente disso, que estendo  e  sinto  esta  mão,  coisas  que  não  ocorreriam  de  modo  tão  distinto a quem dormisse. Mas, pensando nisto cuidadosamente, como não recordar que fui  iludido  nos  sonos  por  pensamentos  semelhantes,  em  outras  ocasiões! E, quando  penso  mais  atentamente,  vejo  do  modo  mais  manifesto  que  a  vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quase me confirma na opinião de que estou dormindo.”

E mais uma vez o francesinho arrogante que um tanto rogo para clareza calculada dos espíritos indomáveis. Falou e disse, como dizem os incertos daqui. Sigo, amigo, sigo, querida, buscando aquela pecinha e aquele desenho de cores vivas e círculos adestrados nos retangulinhos que serão o quadradinho que tentaria postar na parede. Postar? Pendurar? Tudo é um postal na fissura social dos engajamentos. Então penduro. Melhor assim. E tento sonhar acordado para ter certeza de quase nada, mas como sempre. Continuar tendo certeza de quase nada. E tudo ser, querida, aquele sempre redivivo quebra-cabeça das peças que se esconderam de mim. E aquela peça em especial, que tanto já procuramos pelo chão da sala e no ralo dos banheiros. Tento sonhar acordado com café e coca-cola!

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E “os sonhos nunca são conjugados pela  memória  com todas as ações restantes da vida, como sucede com o que ocorre a quem está acordado. Pois, em verdade, se estou acordado e alguém de repente aparece e logo desaparece, como nos sonhos, isto é, sem que eu veja nem de onde veio, nem para onde foi, eu não deixaria de ter razão se o julgasse antes um espectro ou fantasma, fantasiado em meu cérebro e semelhante aos que nele se formam quando durmo, do que um verdadeiro homem. Mas, quando em verdade se me apresentam coisas em que noto distintamente de onde e quando se me ocorrem e vejo um nexo ininterrupto  de  sua  percepção  com  tudo  o  mais  da  vida,  fico  completamente certo   de   que   ocorrem,   não   quando   estou   dormindo,   mas   acordado.”

Meu amor, meu amor, fritei meu ovo que chamo de cérebro. Mas desperto e nú e sem peças na mão, cem peças na mão. E aquela pecinha em especial, querida, aquela!

Citações: DESCARTES, René. Meditações Sobre Filosofia Primeira. Campinas: Unicamp, 2004.

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