Olhar Filosófico
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Há algum tempo, assisti uma série dinamarquesa muito interessante sobre ensino, escola, aprendizado e camaradagem que me chamou a atenção muito mais pelos detalhes importantes aos olhos de um latino-americano brasileiro e envolvido com educação, do que pelo enredo em si, aquele claro e objetivo demonstrado por seus roteiristas. Chamava-se Rita e tratava basicamente das vicissitudes da vida pessoal da protagonista que dava nome à série, mas que sempre seguia em frente como professora na tarefa árdua de ministrar aulas a pré-adolescentes. Com um olhar intelectualmente aguçado e sensível junto aos seus alunos, se revoltava e lutava contra toda injustiça e “padronização pedagógica” criadora de “normalidades sociais”.
Os detalhes que me chamaram a atenção, começam a se descortinar logo nos primeiros episódios. A escola não tinha câmeras nem muros!
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Não sei, sinceramente, se o seu produtor e criador tinha noção disso e queria provocar um questionamento ou se pela cultura e contexto vivido estavam já normatizados em seu íntimo, fato é que aquela escola pública era um lugar de vivência social, aprendizado coletivo e centro de discussões da comunidade. E, apesar disso, que fique claro, não era um oásis no meio do deserto. Sofria com politicagens, falta de investimento adequado, rígida hierarquia e era majoritariamente frequentada por crianças e adolescentes de bairros operários que conviviam com jovens de condição abastada que, por influência de suas famílias, gozavam de benesses e mordomias, dadas as inúmeras pressões feitas sobre a direção. Mas não tinha muros ou câmeras!
Sei que escolas também podem ser reféns de hábitos e condutas de uma sociedade insegura e dominadora e que é cada vez mais difícil achar um colégio sem câmeras, mas como quem trabalha e vive a educação, não posso deixar de trazer ao debate assunto tão emblemático.
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Quando imagino e vejo câmeras dentro de uma escola, pais vibrando com isso, e algumas, indo além do controle “quase” absoluto sobre alunos e professores, querendo tirar o “quase” da frente e ter o domínio até de parte dos banheiros, sinto que mais um projeto de humanização falhou. Se eu peço, ensino e dou o exemplo para alguém, ainda mais a uma criança ou adolescente e, a partir de educadores, sobre o empenho da palavra, dos acordos com bom senso, do predomínio do diálogo sobre o monólogo e da autoridade sobre o autoritarismo, e, num primeiro conflito afirmo que verei as câmeras, pois está tudo gravado, jogo todo empenho civilizacional no lixo. Não há meio-termo!
Ou tenho palavra e arco com elas e as atitudes que refletem, ou robotizemos de vez as relações a partir do que é mais elementar numa cultura de formação, a educação.
Estamos na era das “selfies” (eu), dos “filtros” (quero) e dos “prints” (provo) a qualquer custo. Exaustos, reféns e levados à condição de cúmplices do sistema do capital e do consumo, fomos tomados pela desconfiança e pelo controle ainda mais tecnológico sobre os corpos e mentes. Involuímos. Tal qual uma empresa de transporte de dinheiro, seguimos vigiando os valores errados.
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Atualizamos a ideia da suspeição dos colegas antes de enxergá-los como futuros amigos. Todo mundo é suspeito até prova em contrário. Invertemos a elementar e civilizatória presunção de inocência que nos rege a todos.
Conversamos e mandamos mensagens a colegas acreditando que estamos dialogando ou produzindo provas de acusação mútua? Hoje não sabemos mais.
A vida se enredou nos termos e condições de um contrato de rede social, parece que demos o aceite ao controle total e irrestrito de nossas vidas cotidianas aos administradores de ideias, imagens e conteúdo que vou assumindo como meus.
E enquanto nas escolas as câmeras desmentem as palavras e apontam os culpados, agora, nas ruas, a câmara de gás criada dentro de uma viatura policial parece continuar o trabalho na desconstrução da humanidade. Além de todo camburão ter um pouco de navio negreiro, como cantara O Rappa, também possui um toque de campo de concentração nazista. Uma Arca de Noé reversa, onde quem entra pode morrer e quem sai fica devendo.
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E tudo envolve o mesmo cenário disciplinador, como bem nos lembrou o filósofo Michel Foucault (1926-1984) ao nos falar, em sua obra “Vigiar e Punir”, da emblemática ideia do panóptico (figura que representa um modelo ideal de controle, onde de um único ponto, se vê o todo circundante e o domina): “Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar.”
E, hoje, os mais sensíveis e humanos, vão se fechando para este mundo controlador em seu auge persecutório. Evitamos os contatos sociais acreditando que a humanidade em seu atual estágio parece mais um erro da Criação do que uma esperança Evolutiva.
Enquanto isso, leio a notícia que, brasileiros, já somos 36% em estado de insegurança alimentar. Ódio, arma e capital sempre terminarão em medo, violência e fome.
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