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Segundo o filósofo espanhol José Ferrater Mora (1912-1991), escritor dentre outras obras, de um importante Dicionário de Filosofia, dado é o que está posto, à vista e à consciência de todos para ser pensado e elaborado a partir de uma reflexão, ou seja, como nos diz o próprio filósofo, “... algo é dado quando se encontra imediatamente presente a um sujeito que conhece (...) O dado é considerado como um ponto de partida para o conhecimento, mas não é, todavia, conhecimento.”
Dado, assim compreendido, é a primeira parte do fenômeno de qualquer conhecimento ainda não organizado, refletido, hierarquizado. Por mais que algumas correntes filosóficas reposicionem e aprofundem de acordo com as suas teorias este conceito, colocando-o ora em relação aos sentidos (dados dos sentidos – tato, olfato etc.), ora em relação à consciência (dados mentais, referências), há uma concordância mais geral com aquilo que aponta Ferrater Mora.
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Sendo assim, pensamos, aprendemos e evoluímos, primeiramente, a partir dos dados com os quais nos deparamos por toda a vida. Se existimos, e parece isso ser indubitável neste momento em que escrevo e você me lê, estamos jogados numa realidade composta de dados que precisam ser vistos, lidos, refletidos e organizados no nosso entendimento.
A questão é: como nós, particularmente, sentimos e abstraímos (trazemos à nossa mente) os dados que nos cercam? Se somos diferentes e dotados de discernimento, tudo com o que nos deparamos se transforma num processo de interpretação. É aí que começa o problema e a solução de grande parte da vida humana.
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Quando interpretamos e organizamos aquilo que percebemos, criamos ou deduzimos um tipo e um grau de conhecimento que pode ser traduzido, comumente, por versão. E versão é um modo de interpretar e narrar um acontecimento, entendido como um conjunto de dados organizados.
Toda nossa produção filosófica e científica é, portanto, um conjunto de versões sobre determinados acontecimentos. Mas o que faz dela ser digna de aceitação geral muito mais do que um objeto de fé ou uma corrente de WhatsApp? Penso em duas situações só para começar. Primeiro, a busca pela verdade ou certeza dos fenômenos e acontecimentos para além de qualquer opinião pessoal ou argumento de (suposta) autoridade e, segundo, a construção de uma comunidade dialógica e experimental alicerçada nas trocas de ideias baseadas no bom senso. E o bom senso, como nos diz o filósofo René Descartes (1596-1650) em sua revolucionária obra Discurso do Método, “...é a coisa que, no mundo, está mais bem distribuída (...) o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso que é aquilo a que se chama o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; da mesma forma que a diversidade das nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais razoáveis do que outros, mas unicamente do fato de nós conduzirmos os nossos pensamentos por vias diversas e de não considerarmos as mesmas coisas."
Filosofar e fazer ciência, portanto, são ações aptas ao entendimento geral porque produzem e estudam os fenômenos que lhes são caros a partir da perspectiva da autoridade do argumento racional.
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Impactado ou não pela filosofia e pela ciência, nosso dia a dia também é feito por versões. Muito além das fofocas, elas são construções que criamos para nos sentirmos acomodados no mundo como parte e participante dessa aventura só de ida que é o viver. Mas, menos rigorosas do que a forma como são cobradas no pensamento filosófico e científico, nossas versões cotidianas são mais imaginativas e impulsivas.
Criamos e desfazemos situações que nem sequer analisamos se de fato existiram ou se foram apenas fruto das nossas emoções. Num estalar de dedos, julgamos e decretamos como verdade aquilo que achamos ter visto e vivenciado, para num momento depois desfazer todo esse julgamento e repetir para nós mesmos que nunca mais iremos cometer tal erro... até que ele aconteça de novo e de outras formas. Coerência talvez seja mesmo uma ironia dos deuses.
Quem sabe devamos mesmo nos perdoar e agir como Raul Seixas (filósofo de formação e por vocação), “Eu prefiro ser/ Essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião/ Formada sobre tudo.”
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Mutatis mutandis, mudar o que precisa ser mudado!
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