04 de Novembro de 2024 • 17:21
Olhar Filosófico
Um primeiro ponto a se ressaltar na perspectiva do filósofo Bernard Charlot, é sua “questão-conceito” de relação com o saber. Essa não é, como diz o próprio autor, uma questão nova; ela aparece em meio aos psicanalistas das décadas de 60, se desenvolve entre os sociólogos da década de 70, mas só nos anos 80 e 90 torna-se um conceito propriamente dito, que irá estruturar toda uma problemática que se voltará para o âmbito da educação. Mas, história à parte, assim Bernard Charlot o define de forma mais completa (o autor revisitou por várias vezes este conceito): “A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender. A relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um ‘conteúdo de pensamento’, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber_ consequentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a atividade no mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo, como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação.”
A ideia de “relação” é fundamental não só para se compreender a posição epistemológica da escola e problematizar certos conteúdos e didáticas, antes, é um conceito de Antropologia Filosófica, afinal, não se aprende hermeticamente este ou aquele saber em determinada instituição, o que se pode, diz Charlot, é induzir (papel da escola) uma relação, ou seja, a forma em que nos colocamos a aprender é sempre “a partir de” e para “uma relação com”. Relação essa que envolve sempre um movimento triplo que traduz o próprio processo educacional humano. Em primeiro lugar, o movimento de humanização, afinal, nos humanizamos a todos, nenhum a menos, educar é perceber-se espécie sabedora, consciente, isto é, descobrir-se entre semelhantes e permitir que os mesmos se descubram. Em segundo lugar, o movimento de subjetivação-singularização, educar é identificar-se como sujeito no mundo e sujeito de si mesmo: identificar-se por meio da dialética que me mostra que há uma história que me contam, pela qual me informo e me acomodo, por assim dizer, no mundo, e há uma história que me conto, pela qual me formo e me incomodo no mundo, renasço como caçador de mim. Por fim, o movimento de socialização, educar é manter contato permanente, entrar nas estruturas do meio do qual faz parte, resgatando o já tramado e tramando o coletivamente desejado.
Diz Charlot, “o princípio básico é o seguinte: o homem não é dado, o homem é construído sob três formas. A espécie humana é construída por ela mesma no decorrer da história; o homem é construído enquanto espécie humana. Também, ele é construído como membro de uma sociedade e de uma cultura; a sociedade e a cultura têm uma história e cada um de nós pertence a uma cultura que foi constituída no tempo. Por fim, o homem é construído enquanto sujeito singular que tem uma história singular (...) três processos que só podem acontecer graças à educação.”
Com base na sua concepção de “relação” e, ainda, no âmbito da educação como um todo, Charlot, que vê a Escola como a instituição que deve “induzir” as relações com o saber por princípios epistemológicos, pressupõe três dimensões para o desenvolvimento da tarefa (ou responsabilidade social) escolar, sendo a primeira delas “mobilizar” o aluno, ou seja, oferecer razões para que ele se prepare para dispor de si mesmo, dentro da escola, de seu processo de construção enquanto indivíduo coletivo; por meio da mobilização, posso perceber e desenvolver os recursos acionados, a atividade do aluno tem de ir ao encontro das “razões” que o provocam a se movimentar, a desenvolver com argumentos discerníveis de sua ‘ocupação’ no mundo; mobilizado e atento, posso, com o aluno, “promover sentidos”, isto é, possibilitar que se entendam cada vez mais como sujeitos responsáveis pela ressignificação e criação de sentidos de ser. É nessas dimensões que se articula o saber na escola, afinal, “a escola é um lugar que requer uma forma de distanciamento para com a experiência cotidiana. O que, nesta, é situação vivenciada e contextualizada, objeto do meio ambiente, torna-se, na escola, objeto de pensamento, de discurso, de texto (...) a escola é fundamentalmente um espaço de palavras que possibilitam a objetivação do mundo e o distanciamento para com ele e que abrem janelas para outros espaços e tempos, para o imaginário e o ideal.”
O que fica evidente, portanto, nos apontamentos filosóficos e pedagógicos de Charlot, é a ideia de que sua relação com o saber pressupõe processos e movimentos na escola que não são estranhos à Filosofia, muito pelo contrário, é justamente a Filosofia quem pode conferir ênfase à lógica do aprender, ao conhecimento do possível. Afinal, como mais de uma vez ressalta o filósofo: “Na escola, quem aprende não é o eu empírico, não é o eu da experiência cotidiana; quem aprende na escola é o eu epistêmico, o que os filósofos chamam de Razão, o eu pensante.”
Bernard Jean Jacques Charlot é graduado em Filosofia e doutor pela Universidade de Paris 10; trabalhou ativamente com pesquisas em educação na Tunísia, França e, atualmente, no Brasil, na Universidade Federal de Sergipe; idealizou e fundou a ESCOL (Educação, Socialização e comunidades Locais) na Universidade de Paris 8, cujo objetivo era investigar como os alunos de diversas classes sociais se relacionavam com o saber; um dos fundadores do Fórum Mundial de Educação em Porto Alegre; autor de uma série de livros sobre educação em seus aspectos filosóficos e relacionados aos saberes e à apropriação dos mesmos por parte dos alunos.
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