Olhar Filosófico

Ai! Que preguiça!

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Já dizia em tempos idos, antigo professor de Lógica e Estética, a mais próxima convivência com um estereótipo genuíno de filósofo com quem trombei em terra, que “o tempo é escolha como estudar é para quem pode”. Nunca entendi ao certo tal provocação, adágio, provérbio ou sentença pronunciada pelo velho mestre. Mas arisco que penso ser, lambari na mente e siri nos pés, sempre busquei soluções para o inaudito das palavras. Pois palavrear é revelar também  em oculto certo leque de sentidos. Como mãe pedindo fraca pão pro filho débil e magro que também é grita de justiça e adaga que rasga corpo e alma de cristão capitalista.

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“Tempo é escolha como estudar é pra quem pode!”, cruel dessa vez me soa, mestre, tempo tão substantivo e mesmo tão apequenado, parece que de nada adiantou as musas do poeta escolherem Hesíodo (em tradução de Jaa Torrano) para contar a história dos divinos, tempo se verbaliza e não petrifica em substância. Crono nasce ruim, mas, enquanto já promessa, vinga a mãe que é Terra: “Quantos da Terra e do Céu nasceram,/ filhos os mais temíveis, detestava-os o pai/ dês o começo: tão logo cada um deles nascia/ a todos ocultava, à luz não os permitindo,/ na cova da Terra. Alegrava-se na maligna obra/ o Céu. Por dentro gemia a Terra prodigiosa/ atulhada, e urdiu dolosa e maligna arte./ Rápida criou o gênero do grisalho aço,/ forjou grande podão e indicou aos filhos./ Disse com ousadia, ofendida no coração: “Filhos meus e do pai estólido, se quiserdes/ ter-me fé, puniremos o maligno ultraje de vosso/ pai, pois ele tramou antes obras indignas”./ Assim falou e a todos reteve o terror, ninguém/ vozeou. Ousado o grande Crono de curvo pensar/ devolveu logo as palavras à mãe cuidadosa:/ “Mãe, isto eu prometo e cumprirei/ a obra, porque nefando não me importa o nosso/ pai, pois ele tramou antes obras indignas”/ Assim falou. Exultou nas entranhas Terra prodigiosa,/ colocou-o oculto em tocaia, pôs-lhe nas mãos/ a foice dentada e inculcou-lhe todo o ardil.” A partir daí, a antiga história do tempo, que por ser do tempo é só história narrada, nem nova, nem velha. Tempo se conjugou nas artimanhas das benditas palavras do poeta, meio profeta, meio cavalo alado ouvindo de outrora história de amor e guerra.

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Tempo não pode ser escolha se até para si atrai evento e constrói a trajetória em que todos estamos sujeitos. Tempo é estar, estalar de dedos e memória.

Seria então o fato de “estudar é pra quem pode” escolher o tempo de agora? Abrir mão do segundo para se completar a hora? Abrir mão do alimento e alimentar-se de auroras? Seria? Abrir mão e fechar mão? E também não me parece tão certo ou justo ou lógico.

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Mas como faria o sujeito Mário de Andrade, que em canetadas traz um Zaratustra aos trópicos, nascer em palavra o Brasil devidamente atemporal e sempre anacrônico (entende agora, mestre?): “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

— Ai! Que preguiça!...

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E não dizia mais nada.”

“Ai! Que preguiça!...” Que maravilhosa virtude que a nós toca bem fundo, no ponto de produzir identidade. A hora que vejo já contaminado por Mário senhor de Andrade, é tempo reflexo de espera, olhar e preguiça. Já “não fazer nada” é outra coisa! Preguiça é prece do sábio. E tempo é tempero do verbo temperar. E de fato, mesmo eu provocador, nesse momento exato, oh! mestre!, filósofo da vida de outrora, não conseguiria dar mais exemplo de que “nem tempo é escolha, nem estudar é pra quem pode”. 

Se tudo engloba tudo e o tempo ainda é surpresa, a chave do mistério, dentre outras, muitas outras, é Folivora! Salve o bicho-preguiça! Consome o básico, reproduz o mínimo, conserva o máximo e entende que a vida é sono, raízes, frutos e folhas. Nem rico ou pobre, viril ou impotente, macho ou fêmea, caça ou predador, bicho ou gente. Meu tempo é um Folivora resistente. Mas com as garras, com as devidas garras!

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