Olhar Filosófico

Água para minha sede

Continua depois da publicidade

Chovia e ainda era cedo. Aquele homem, já perto da idade média do tempo de vida plena, persistia a trovejar dentro de si. Nada novo em nenhum front ou cercania. Tudo seguia habitado de deuses, tudo em maravilhas e narrativas épicas construídas a partir das pedras e poetas que plantaram a identidade num povo, o grego. Mas, aquele homem, também heleno e forjado no fogo, a partir do calejado das mãos na agricultura que cada vez mais racionalizava e guiava o nascimento dos frutos e ervas a partir do parto da terra mãe, tentava-se em outra escala de cor, além daquela dada como certa, épica e em linha reta de sua época e momento histórico.

Faça parte do grupo do Diário no WhatsApp e Telegram.
Mantenha-se bem informado.

Fim do dia ou dos tempos, pouco lhe importava de tudo aquilo que diziam. E o que diziam? Repetiam. Repercutiam. Rapsódias e belas falas. E só. 

Continua depois da publicidade

Ainda que Homero e Hesíodo tivessem levantado bandeira e feito legado, o esgotamento da verdade e do feito mágico ultrapassaram a hora derradeira do adeus, mesmo que por enquanto. 

Seguia firme no tempo a necessidade do novo. E o novo era o todo, o novo era o simples, o naturalmente dado, posto e invocado pela mente ousada na reflexão, pela mente versada em dúvida e vista como physis, natureza não divinizada. 

Continua depois da publicidade

Quando Aquiles, cantado em verso na guerra troiana, morria de flecha certeira devidamente afiada, falho e desprotegido, caía por terra também o sonho do herói conservado. Já antes, como prenúncio, de dor em dor, pelas mãos de Heitor tombava Pátroclo, a ferida aquileia já era anúncio do chôrodos heróis e das certezas que ali insepultas ficavam:  “Em prado verde, habitação dos manes,/ Os do Pelides acham, de Pátroclo,/ De Antíloco, de Ajax galhardo e forte,/ Que os Dânaos superava, exceto Aquiles./ Eram deste em redor, quando Agamemnon/ Surge dolente, e as sombras dos que Egisto/ Em seu paço com ele assassinara./ Atrida, enceta Aquiles, ao Tonante/ Nós julgávamos seres o mais caro,/ Por dominares nos heróis que em Tróia/ Padecemos sem conto./ Ah! que o tributo/ Não rendeste primeiro à Parca dura!/ Naqueles campos com supremas honras/ Tu falecesses! dos Aqueus ereto,/ Glória a teu filho o monumento fora;/ Era fatal misérrimo acabares!” (MENDES, O. M. Odisseia. eBooksBrasil, 2009).

Ulisses, chamado em origem Odysseus, ainda tomado de ira e sonho, consegue voltar à Ítaca, seu reino e berço,  para o reencontro esperado desde o insano conflito para o qual embarcara. Esperariam ainda Penélope, sua esposa e rainha, e Telêmaco, seu filho amado já quase esquecido? Sim, talvez o esperassem, o poeta assim nos narra. Todavia, Ulisses não é mais o mesmo, a tristeza o habita e a vida já não lhe parece tão rara. Vinga o tempo passado, mas a verdade eclipsara: “Tácito Ulisses come e ávido bebe,/ Ideando a vingança; e, confortado,/ A copa do porqueiro aceita plena,/ Jubiloso e veloz:/ “Rico era e forte/ Quem te comprou, qual, hóspede, o apregoas?/ Morto o crês pela causa de Agamemnon:/ Talvez o conhecesse eu vagamundo;/ Sabe a etérea mansão, quando o nomeies,/ Se ocultar testemunho em mim depares.” (MENDES, O. M. Odisseia. eBooksBrasil, 2009). Tragicamente, em não muito tempo, no nevoeiro de uma nova empreitada heróica, ainda que menos sábia, Ulisses se joga aos deuses e os deuses lhe devolvem ao Nada. Silencia o último herói da era olímpica!  

Nada permanece à vontade de poder. Tudo sucumbe às interpretações das novas verdades, ou permanências momentâneas. Interpretações que movem a história e criam novas terras e novo céu.

Continua depois da publicidade

Enquanto as ideias voam e as histórias se plantam como carvalho, o homem calado segue em Mileto, sua ilha e cidade, e em relâmpagos neuronais, chove ideias sobre todas as coisas. Suas reflexões, como gotas aladas, fecundam novas possibilidades e a vida grita por novo sentido. Ele, ainda sozinho, suporta nas costas o peso da autenticidade, a tontura da ousadia. Não poderia voltar atrás. Sofre enquanto presa ferida, a cultura de seus pais que permanece um passo suspenso, renasce enquanto fera e predador, sua própria cultura que surge um passo à frente: “Tudo é água!” Tudo é de natureza indômita e pensamento aproximado. Eis que o logos (a razão num sentido mais pleno) invade todos os templos e Apolo não segue mais iluminado. Aceso está o homem de Mileto, pai da filosofia e exímio matemático. Nunca mais seríamos os mesmos.

Por tanto feito e transformado, a lente de Nietzsche, filósofo encharcado de Modernidade, capta o sentido exato do que surgiria de fato naquele glorioso momento: “A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário determo-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: Tudo é um.”

 

Continua depois da publicidade

Mais lidas

Conteúdos Recomendados

©2024 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software