Olhar Filosófico
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Em um mundo cada vez mais dominado por "memes" e "takes", onde a verdade se dissolve em um mar de opiniões e "fake news", surge a figura icônica (e irônica) de René Descartes, o filósofo que nos ensinou a duvidar de tudo. Em suas célebres palavras: "Penso, logo existo", ele nos convida a questionar a própria realidade, a desconstruir as crenças pré-concebidas e a buscar a verdade com rigor e ceticismo.
Mas será que ainda há espaço para a busca pela verdade no mundo da pós-verdade, onde a emoção e a opinião pessoal se sobrepõem à razão e à lógica? Será que a filosofia cartesiana, com sua ênfase na dúvida metódica e na busca por um fundamento inabalável do conhecimento, ainda é relevante para as sociedades contemporâneas?
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Para responder a essas perguntas, é preciso revisitar alguns dos principais pontos do pensamento de Descartes. Em suas "Meditações Metafísicas", ele propõe um método radical de dúvida, questionando a veracidade de tudo que nos parece evidente. Desde as percepções sensoriais até a existência do mundo físico, Descartes coloca tudo em xeque, buscando um ponto de partida seguro para o conhecimento.
Esse ponto de partida, ele o encontra na própria consciência, na capacidade de pensar e duvidar. É a partir dessa "certeza indubitável" que Descartes constrói sua filosofia, estabelecendo uma dualidade fundamental entre a mente e o corpo, entre o ser pensante (res cogitans) e o ser material (res extensa).
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É interessante notar como essa dualidade cartesiana pode ser vista como uma metáfora para a própria divisão do mundo contemporâneo. De um lado, temos a esfera da razão, da ciência e da busca pela verdade objetiva. Do outro, temos o mundo das emoções, das crenças pessoais e das opiniões subjetivas. E hoje, ambos os lados, não só vivem em desencontro e desacordo (o que sempre inspirou grandes debates e respostas profundas), mas, acima de tudo, com as crenças e convicções pessoais sobrepujando a reflexão e o pensamento crítico.
No mundo da pós-verdade, a esfera das opiniões parece ter se expandido desmesuradamente, enquanto a busca pela verdade racional e objetiva parece ter se tornado cada vez mais rara. As pessoas se apegam a todas as suas crenças com fervor religioso, recusando-se a ouvir argumentos contrários e se refugiando em bolhas de informação onde suas convicções são constantemente reafirmadas.
Nesse contexto, a ironia do pensamento cartesiano se torna ainda mais evidente. Descartes, que nos ensinou a duvidar de tudo, parece ser um fantasma fora de lugar em um mundo onde a certeza, mesmo que ilusória, é mais valorizada do que a incerteza, a dúvida e a busca pela verdade.
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Mas será que a filosofia cartesiana ainda pode nos oferecer algo de valor? Será que ainda é possível resgatar a importância da verdade em um mundo dominado pelas opiniões?
Acredito que sim. A dúvida metódica de Descartes pode ser vista como um antídoto contra o dogmatismo e a intolerância. Ao questionarmos tudo, inclusive nossas próprias crenças, nos tornamos mais receptivos a novas ideias e mais propensos a dialogar com aqueles que pensam diferente de nós.
Em um mundo cada vez mais dominado pelos algoritmos das grandes empresas tecnológicas, convencendo aos incautos que se regozijam em “likes” de que todos sabem de tudo nas redes do absurdo, a busca pela verdade, mesmo que árdua e incerta, é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e tolerante. E é nesse sentido que a filosofia cartesiana, com sua ênfase na razão e na crítica, ainda pode nos oferecer um caminho a seguir.
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Parafraseando Descartes, podemos dizer que, em um mundo pós-verdade, "duvidar é pensar". E pensar, por sua vez, é o primeiro passo para a busca pela verdade.
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