Olhar Filosófico

A verdade é aquilo

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Poderia aqui escrever sobre a verdade, uma vez que assim o título, tão ostensivamente, sugere. Mas não, antes escreverei sobre a linguagem, aquilo que no título subjaz. Pois a verdade é aquilo que antevejo pela fresta escura da minha língua. Seja lambendo a palavra recém-pensada, seja sentindo a matéria no som da fala.

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Se erótica é a alma, como certa vez dissera Adélia Prado, a língua é um Deus em desatino, a contemplar do infinito, uma luta entre Apolo e Dionísio. Vamos movendo as peças de um tabuleiro, construindo mundos dentro da gente, sentido o espaço ausente ser preenchido pelo som da ideia indo e vindo.

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Ruth Rocha, escreveu sobre um menino e o universo a um passo da língua. “Marcelo, marmelo, martelo”, de criança pensando na vida, decidiu pôr em dúvida o sentido das respostas se não formulamos as melhores dúvidas, ainda.

“Uma vez, Marcelo cismou com o nome das coisas: — Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo? — Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos. — E por que é que não escolheram martelo? — Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta... — Por que é que não escolheram marmelo? — Porque marmelo é nome de fruta, menino! — E a fruta não podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo?”

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Tem razão Fernando Pessoa, em Bernardo Soares do seu “Desassossego”, quando lamenta não a invasão da pátria querida, mas a cartografia violentada da língua.

“Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”

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Na língua somos mais humanos, também mais animais e não em tom pejorativo, pois ao latido lingual do cão, segue o gemido de dor amigo, o miado felino convertido, em som-palavra sempre ouvido. Como “Tecendo a manhã”, João Cabral de Melo Neto, deixa-nos perplexo desses sentidos.

“Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos./De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro; de um outro galo/que apanhe o grito de um galo antes/e o lance a outro; e de outros galos/que com muitos outros galos se cruzem/os fios de sol de seus gritos de galo,/para que a manhã, desde uma teia tênue,/se vá tecendo, entre todos os galos.”

Não quero mais que palavras e a conservação da minha língua. Mudo, com boca ou sem memória, só serei eu se de fato no céu da boca estiver o encéfalo e as garras do meu conceito.

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Não acredito em verdades, pois verdades são apenas aquilo que pode ser. E ser podendo ser dito. E se dizendo pouco de tudo tenho, a verdade é um sonho que por ora resiste no poema chamado ciência, de codinome filosofia de vida.

Se das coisas temos as razões, cuidemos daquilo que não foi falado, pois aí mora o estado da coisa não nascida, o sentido embaralhado e reinventado pela língua.

Richard Rorty, filósofo pragmatista, alertava os incautos arautos das verdades presumidas. O que vejo fora, não se traduz no véu da fala, nem verdade, nem mentira, e o que de dentro de nós exala, constrói-se o véu da vida, verdade ou mentira.

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“Dizer que a verdade não está diante de nós é simplesmente dizer que onde não há frases não há verdade, que as frases são elementos das linguagens humanas e que as linguagens humanas são criações do homem. A verdade não pode estar diante de nós - não pode existir independente da mente humana - porque as frases não podem existir dessa maneira ou estar diante de nós dessa maneira. O mundo está diante de nós, mas as descrições do mundo não. Só as descrições do mundo podem ser verdadeiras ou falsas; o mundo por si próprio - sem auxílio das atividades descritivas dos seres humanos - não pode.”

O mundo que me rodeia não é o corpo da ideia que habito. E a certeza que me trapaceia, única, será sempre a fome de um irmão aflito. E só na fome não há palavra, não há pátria, não pode haver língua, senão como grito!

* Diego Monsalvo, professor de filosofia e escritor

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