Olhar Filosófico

À CIDADE, com amor

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Todos, sem exceção, de moradores da Mesopotâmia a filhos do Estado-Nação, nascemos e vivemos na cidade. Em seu sentido mais amplo. Seja rural, urbana, praiana ou, simplesmente, leviana. Cidade como “megatrópole”.

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A cidade habita em nós numa proporção desigual de como nós habitamos nela.
Somos jogados num planeta, num mundo que se mostra como reflexo na cidade onde moramos. Gerações outras, há tempos, organizaram o morar, o viver e o conviver que hoje desfrutamos pouco ou lamentamos muito. 

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É verdade que de tempo em tempo, de reforma em reforma e de revolução em revolução, ajustamos nosso estar geográfico aos desejos dessa coletividade do presente, mas a mudança idealizada do agora, será tão somente para uma cidade do futuro. Se entendermos que o processo vale à morada e qualquer escalada vale à vista, então estamos bem.

Vivemos de expectativas a partir do que fazemos nas possibilidades concretas da cidade de onde estamos. Como me visto, como, bebo, agonizo e me embriago de prazer, é fruto dessa diminuta morada coletiva da proximidade. O cativeiro da casa ou da rua, do bairro, da vila, da palafita indigna, da marquise como telhado, das filas, do concreto e do barro, do esgoto a céu aberto ou encanado e da sujeira sempre para debaixo dos tapetes caros que governam parte do mundo, enfim, a cidade se expande de quarteirão em quarteirão, esquina em esquina.
 
Mas à memória pública, cabe a nossa ação de cultivá-la, pois essa tende a se perder na memória publicada. Publicadíssima, como movimento interpretativo, narrado pelas bocas cheias dos vencedores, administradores do presente, presos às regalias e vantagens do passado cristalizado com o propósito de marcar as datas festivas que nos é permitido comemorar, das baixarias monarquistas à república do café com leite, da escravidão legitimada à próxima “blackfriday”, da bíblia bem-comportada ao natal triste do peru, jurado em ação de graças ao lado do cadáver do bebê porco e do arroz com uvas-passas. E lentilha para encher o bolso e esvaziar o que resta da consciência culpada.

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A cidade precisa da memória em ato, não a do retrovisor que se ampara nas sombras sem nunca ter plantado uma árvore. 

Tento muitas vezes e não consigo, me desfazer do pó da cidade. Ele é real. Quase viscoso como o sangue. Vem engrossado desde tempos outros para herança nossa que não fomos consultados. Não habitamos cidade sem antes tornarmo-nos dela habitação. Por isso, por fim, sempre mergulho nesse gigante de concreto, de muros altos e janelas semiabertas.
Se a cidade nos consome e dela fazemos moradia, é nela que construímos as pilastras ou as grades dos nossos sonhos. E sonhos são reais se forem concretos.

A concretude de um sonho na cidade começa na possibilidade do entendimento coletivo a envolver toda a vizinhança. O sonho é uma verdade quando coletivo, na paúra da solidão, ele é só delírio. Precisamos domar a cidade e destronar suas memórias falhas, seus contos de grandeza onde os pequenos Atlas que sustentam o peso da Terra, trabalham, consomem e não sorriem pela boca dos outros nas ruas em que circulam. 

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Chico Science (1966-1997), cantor e, talvez, último ícone de um movimento de vanguarda musical no Brasil, disse em canção a visão dos fatos com a clareza urbana do possível: “O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas/Que cresceram com a força de pedreiros suicidas/Cavaleiros circulam vigiando as pessoas/Não importa se são ruins, nem importa se são boas/E a cidade se apresenta centro das ambições/Para mendigos ou ricos e outras armações”.

Entender a cidade é entender o mundo. Mudar o mundo, é revolucionar a sua cidade.

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