Olhar Filosófico

A Academia

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Silêncio! É Sócrates quem fala: “Então, pus-me a considerar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei.”

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Após a pena dada a Sócrates, condenação de morte, aplicada por uma Assembleia dividida, marcada pelo conluio e deslumbramento da maior parte dos votantes pelas falas pomposas da sofística, Platão, desolado, começa sua retirada da vida pública da pujante e democrática Atenas. Para ele, Sócrates, mais do que um cidadão, um filósofo atemporal, fora condenado num processo arbitrário baseado em manipulação das leis (um lawfare da época) e discursos grotescos, próprios de um regime político que tinha por finalidade afastar a crítica e formular o pensamento único, qual seja, conservador do ‘status quo’ e anti-filosófico.

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Platão, portanto, ainda jovem, começa a perceber que talvez fosse necessário a construção de um lugar, um ambiente próprio para o pensamento reflexivo e filosófico acontecer com liberdade e discernimento. E do “talvez”, começa já na ideia  a construção, daquela instituição que seria o centro de excelência da educação e do conhecimento grego, de um período que hoje conhecemos como Clássico. 

E mais de uma década depois da morte de Sócrates, Platão (aquele de “ombros ou costas largas”) ou Arístocles, como já não era mais chamado nem pelo círculo mais íntimo, fundasua Academia. Chamada assim numa homenagem ao herói Academo, de participação destacada na guerra de Tróia e cujo nome possui o significado “aquele que age sozinho, independente”. Fontes historiográficas sustentam, ainda, que seu corpo fora enterrado no bosque (jardim de Akademos) onde se construiria a destacada “escola” platônica. Portanto, como homenagem a um tradicional e peculiar herói e como defesa do pensamento filosófico, surge esse centro de educação. E nesse cenário, dois fatores sempre me chamam a atenção: a defesa do pensamento livre (contra a tirania) e a proteção do discurso crítico (contra a demagogia).

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Sócrates, em sua defesa, já intuía essa necessidade: “E todavia, cidadãos atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo com os mesmos discursos com os quais costumo falar nas feiras, perto dos bancos, onde muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares, não vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor. (...) permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar - e poderá ser pior ou mesmo melhor - depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção a isso: se o que digo é justo ou não: essa, de fato, é a virtude do juiz, do orador - dizer a verdade.”

No primeiro fator, me parece clara a intenção platônica de proteger o pensamento reflexivo de possíveis vícios e/ou ataques tirânicos e unidimensionais. Contra a tirania de um homem só, de uma oligarquia ou mesmo da tirania das massas. O pensar filosófico é fundamentalmente plural, mediato, responsável e ainda que sirva à prova de sua teoria, o gênero dialógico criado por Platão, demonstra que o caminho para a verdade é uma via ampla de discussão entre teses e antíteses, entre argumento e contra argumento. O que pode, a meu ver, ajudar a confirmar essa “regra de ouro” platônica é a própria formação de Aristóteles. Tal filósofo, depois de mais de uma década, sairá do convívio de todo aprendizado da Academia, elaborará uma teoria amplamente contrária ao pensamento do seu mestre e criará o Liceu dentro de princípios muito singulares. Porém, só pode assim proceder, pois a prática filosófica platônica era a do pensamento livre, radical, amplo e profundo, marcada sempre pela sua razão aberta ao debate e sua construção dialética na estrutura do diálogo.

No segundo fator, Platão demonstra todo seu cuidado para com as análises dos discursos trabalhados em sua Academia, onde, aliás, pelo rigor filosófico, não estava convidado aquele que não soubesse geometria (um apelo ao pensamento lógico formal e ao trabalho para com as ideias/formas). O discurso demagógico, tão em voga nas praças públicas atenienses, simplista, baseado em palavras de ordem e jargões decorativos, imediatista, de caráter apelativo emocional, típico da democracia (o que não significa que a alternativa seria uma ditadura, segundo Platão), é o que vitimou Sócrates e feriu de morte toda a estrutura jurídica de Atenas, bem como a devoção pela lei e sua obediência que moviam o espírito da cidade e toda sua coesão e harmonia social.

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Eis a voz de Sócrates antecipando o fato: “Agora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vós que me condenastes, porque já estou no ponto em que os homens especialmente vaticinam, quando estão para morrer. (...) Fizestes isto acreditando subtrair-vos ao aborrecimento de terdes de dar conta da vossa vida, mas eu vos asseguro que tudo sairá ao contrário.  Em maior número serão os vossos censores, que eu até agora contive, e vós reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e disso tereis maiores aborrecimentos.  Se acreditais, matando os homens, entreter alguns dos vossos críticos, não pensais justo; esse modo de vos livrardes não é decerto eficaz nem belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros, mas aplicarse a se tornar, quanto se puder, melhor. Faço, pois, este vaticínio a vós que me condenastes. Chego ao fim.”

A Academia se transforma assim num centro intelectual-formativo tendo como característica fundamental o desenvolvimento pleno do pensamento filosófico, em toda sua extensão, radicalidade e rigor matemático. Platão, com a injustiça cometida contra Sócrates aberta como uma ferida na alma, entendeu que para o pleno desenvolvimento humano, tão necessitado do conhecimento e das reflexões filosóficas, era fundamental a proteção da capacidade de pensar e fazer pensar de todos aqueles interessados em ir além do que está colocado, dado, imposto, para se chegar o mais próximo possível do desvelamento, da descoberta, que é o próprio sentido da verdade em grego (alétheia).

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