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Imagine um trem do tempo que parte da Estação Valongo, em Santos, com destino ao futuro. A bordo, autoridades orgulhosas anunciam a restauração da primeira estação ferroviária do estado e a criação de um Museu Ferroviário. O investimento? R$ 9 milhões. Uma quantia considerável para preservar a história dos trilhos que um dia transportaram o café que impulsionou a economia paulista.
Enquanto isso, a poucos quilômetros dali, no Dique da Vila Gilda, cerca de 26 mil pessoas vivem sobre palafitas, sem acesso adequado a água potável e saneamento básico. Apenas 17% das residências possuem abastecimento de água encanada, segundo a própria SABESP. As demais dependem de ligações clandestinas, feitas com mangueiras improvisadas, vulneráveis à contaminação. Além disso, a ausência de um sistema de esgoto adequado leva ao despejo de resíduos diretamente nas águas do rio dos Bugres, agravando riscos sanitários. A resposta institucional? Em vez de priorizar obras estruturantes, a companhia decidiu patrocinar uma equipe da Copa Truck, em plena crise hídrica na Baixada.
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O contraste é gritante. De um lado, a preservação de marcos históricos e o patrocínio de eventos de alto impacto visual. Do outro, a invisibilidade das carências básicas. É como se estivéssemos mais empenhados em revisitar o passado e colecionar cliques do presente do que em construir um futuro minimamente justo para os cidadãos de hoje.
O Porto de Santos, artéria vital da economia nacional, vive um paradoxo semelhante. A modernização dos acessos, sejam rodoviários ou ferroviários, é tratada como um consenso técnico, mas os avanços efetivos ainda são tímidos diante da necessidade. Estão previstos mais de R$ 28 bilhões em investimentos até o fim da década, mas parte disso depende da superação de entraves licitatórios, burocracias federais e disputas técnicas que emperram decisões. Importante reconhecer que muitas vezes, os gestores da autoridade portuária atuam entre pressões políticas, limitações legais e expectativas da iniciativa privada. Mesmo assim, o gargalo persiste.
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Como se não bastasse, a memória recente nos lembra que há quase dez anos, em 2015, um incêndio devastador atingiu o terminal da Ultracargo na Alemoa. Foram nove dias de chamas, mais de 9 toneladas de peixes mortos, riscos à saúde pública e uma multa ambiental milionária. O ramal ferroviário que prometia mitigar riscos logísticos ainda não saiu do papel, firmado em acordo de intenções em 2024, segue sem cronograma definido. As medidas de prevenção avançaram, mas o rastro da tragédia ainda paira como advertência não totalmente digerida.
Há uma ironia amarga nessa viagem: projetos estruturantes, como o saneamento do Dique ou o destravamento da logística portuária, avançam como obras de Sísifo, sempre prometidos, raramente concluídos. Já os simbólicos, como museus ou patrocínios de alto impacto midiático, deslizam nos trilhos da aprovação célere. Afinal, não há foto de inauguração em rede social com uma tubulação subterrânea concluída. Não há hashtag de sucesso para drenagem nem glamour em estação elevatória de esgoto.
Não se trata de negar o valor da história ou do entretenimento. A Estação Valongo é, de fato, um monumento à era do café. Mas que legado estamos construindo agora? Enquanto o museu ganha paredes restauradas, crianças do Dique brincam em esgoto a céu aberto, e caminhoneiros ainda enfrentam filas sob sol e asfalto esburacado. Quantas reuniões são necessárias para viabilizar o básico? E quantas vidas podem ser poupadas se o tempo de decisão for menor do que o tempo do marketing institucional?
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O tempo, esse sim, é o recurso mais escasso e mais valioso.
Se o trem da Valongo nos conecta ao passado, é preciso lembrar que os trilhos do futuro exigem coragem de agir no presente. O Brasil tem recursos, como mostrou na Copa de 2014, ao erguer estádios bilionários em tempo recorde. O que falta é clareza de prioridade e vontade política. Que os gestores ouçam o apito desse trem. O futuro não será admirado em vitrines de museus se, do lado de fora, o presente continuar sendo um retrato do abandono.
Que venham as placas, as obras visíveis e os eventos, mas que não nos falte o básico. Porque um país que trata o saneamento como detalhe e a infraestrutura como dilema não embarca no futuro. Ele apenas observa o trem passar.
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