Cotidiano
Em documento intitulado ‘Dossiê Docas’, pesquisadores requerem a instauração de inquérito civil público contra a responsável pelo maior Porto da América Latina
Docas que teria sido beneficiária do Golpe de 64, com a redução de salário, direitos e aumento da carga de trabalho. / Divulgação
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A procuradora da República dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, recebeu ontem – quando se comemorou 73 anos da assinatura da Carta das Nações Unidas e o Estatuto da Corte Internacional de Justiça – denúncia contra a Companhia Docas de Santos, substituída a partir de 1980 pela Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), por supostas “violações aos direitos humanos dos trabalhadores e da população santista durante a ditadura civil-militar”, a exemplo do que afirmam os pesquisadores.
O documento, já intitulado ‘Dossiê Docas’, foi assinado pelo portuário aposentado e pesquisador Antonio Fernandes Neto e pela professora universitária e também pesquisadora Adriana Gomes dos Santos, e subscrito por trabalhadores e advogados. Nele, os pesquisadores requerem a instauração de inquérito civil público contra os administradores da extinta Companhia Docas.
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No Dossiê, consta um conjunto de ações que alegam violações aos direitos humanos durante o período de 1964 a 1985, praticados pelas Forças Armadas e orquestradas e dirigidas pela Companhia Docas de Santos que, segundo a denúncia, teria sido beneficiada pelo Golpe de Estado (31 de março de 1964), com a redução de salário, direitos e aumento da carga de trabalho.
O documento possui mais de 170 páginas em relatos, além de grande acervo comprobatório, que descrevem condições de “vigilância, medo e terror” que teriam como finalidade o incremento dos lucros da então administradora do complexo portuário de Santos.
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A Codesp, atual administradora do Porto, informou que não se manifestará sobre o assunto por não ter informações precisas a respeito.
As denúncias
Segundo o Dossiê, as Docas, entre outras empresas ligadas ao mesmo grupo, financiaram a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), fundado em 1961, e que planejou e executou, junto com os militares, o Golpe de 64. Além disso, na semana posterior ao Golpe, foi instalado o Inquérito Policial Militar, conhecido como IPM da Orla do Cais, no qual foram investigados mais de 400 trabalhadores, sendo que 125 foram processados pela Justiça Militar por obstrução ao trabalho (greves e mobilizações por direitos). O IPM teria funcionado, na sala do chefe do Departamento Pessoal das Docas.
No mesmo período, fuzileiros navais ocuparam os sindicatos portuários, detiveram diretores e pessoas presentes e os encaminharam para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) - criado em 30 de dezembro de 1924 e utilizado principalmente durante o Estado Novo e, mais tarde, na Ditadura Civil-Militar. Na sequência, foi destituída a direção sindical, nomeando novos diretores-interventores. Dos aproximadamente 50 sindicatos na Baixada Santista, 32 sofreram intervenções. E ainda, dirigentes sindicais portuários foram caçados em várias partes do País e, levados de volta a Santos, foram trancafiados no Navio Raul Soares - navio-prisão usado para tortura e repressão nos meses iniciais da Ditadura.
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O ex-coronel Erasmo Dias (secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo e braço forte da repressão) teria afirmado, segundo o Dossiê, que o Raul Soares foi rebocado do Rio de Janeiro, não porque faltassem prisões, mas para derrotar e humilhar os trabalhadores, que não podiam conversar entre si, tinham que ir ao banheiro acompanhado de um fuzileiro naval, comer alimento estragado com as mãos e ficar em celas com água e fezes até os joelhos.
Trabalho
O Dossiê informa que o Contrato Coletivo de Trabalho de 1965, conduzido por um oficial da Marinha, pela direção da empresa e dirigentes sindicais-interventores, teria significado a anulação de anteriores (1962 e 1963), retirado direitos adquiridos e anulado porcentual de horas extras. Esse mesmo contrato teria ainda redução no custo operacional de 33%. Segundo o documento, mesmo com um anunciado aumento salarial de 27%, os trabalhadores obtiveram perdas de 20% nos ganhos reais. “O terror e o silêncio impedia que os trabalhadores reivindicassem direito a melhores ganhos”, afirmam os denunciantes.
O documento aponta, ainda, que ao longo dos anos 70, com a criação do Departamento de Vigilância e Investigação (DVI) da Cia Docas, comandado por um coronel reformado do Exército e por um investigador do Dops, “trabalhadores foram presos, humilhados e torturados nas instalações das Docas de Santos”. Dois anos depois, o Brasil foi considerado Campeão Mundial de Acidentes do Trabalho. Prêmio “vexatório” como reconhecia o próprio e ex-presidente Ernesto Geisel. “Os índices de acidentes na Cia Docas de Santos eram duas e até três vezes superiores aos índices nacionais. Eram tempos de terror”, aponta o Dossiê.
Segundo os pesquisadores, há documentos na denúncia que evidenciam que o controle do processo repressivo na Baixada Santista era feito por uma articulação entre militares e as Docas através de dois executivos.
“Há relatos que eles gravavam, informavam e distribuíam para a comunidade de informações, os atos públicos, reuniões sindicais e partidárias, sendo que muitos desses eventos foram realizados longe das instalações da empresa e sem envolvimento de seus trabalhadores”.
Finalizando, o dossiê aponta que as Docas de Santos e a Codesp teriam colaborado com a Operação Condor. Uma aliança político-militar entre os vários regimes militares da América do Sul — Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, com a CIA dos Estados Unidos, levada a cabo nas décadas de 70 e 80, criada com o objetivo de coordenar a repressão a opositores.